Declaração dos Povos Indígenas

(Lida no dia 10 de fevereiro, na Conferência Estadual de Segurança Alimentar e Nutricional, realizada no Centro de Convenções da Bahia).

Nós povos indígenas não poderíamos ficar de fora deste contexto. Onde o governo na sua infinita sabedoria resolveu de forma participativa envolver todas as camadas sociais que representam esta grande Nação. E nós, como os verdadeiros donos deste território, apesar dos 504 anos (data oficial da invasão do Brasil), que sofremos opressões e massacres.

Quando a Esquadra de Pedro Álvares Cabral despontou no horizonte começou o declínio de uma raça. O homem branco trazia os paus-de-fogo, micróbios letais e uma cultura inacessível ao indígena. Essas três armas destruíram os Índios do Brasil. Em alguns séculos fomos reduzidos a algumas dezenas de milhares de indivíduos. Nações inteiras firam extintas e uma grande parte do acervo cultural perdeu-se ou degenerou-se.

O rápido declínio não se deveu somente a guerra que nos foi movida pelos brancos, os contatos pacíficos foram igualmente perniciosos, e ainda o são.

A penetração da cultura branca destruiu em muitos casos o sistema cultural, implantou a desorganização social e psicológica, ou seja, o processo de aculturação levou a substituir nossos próprios valores por normas típicas dos brancos. Entretanto, o abismo existente entre as duas culturas impede que haja uma síntese completa entre ambas, e o índio desestimulado em sua própria cultura, permaneceu um marginal dentro do mundo branco.

Além da degeneração dos costumes, a confusão resultante no universo psicológico do índio trouxe como conseqüência a redução da taxa de natalidade, fator que hoje ameaça de extinção algumas tribos. Mais iniciativas como esta nos enche de esperança, por percebermos que neste universo ainda existem seres humanos com a percepção de que todos somos iguais, pois só existe uma raça – a raça humana – dividida apenas por traços peculiares, que são as nossas diferenças culturais, nossos costumes e tradições, e que podemos todos juntos contribuir para uma vida digna, lutando pela nossa sobrevivência.

Herdamos dos nossos antepassados a prática da agricultura, o cultivo dos tubérculos (raízes), leguminosas e outros, utilizamos a carne de animais silvestres, aves e peixes, mais só o necessário para a nossa sobrevivência, sem causar danos a natureza. Somos filhos de Tupã e os ensinamentos passados por Ele estabelecem uma harmonia entre o homem (corpo e alma) e a Mãe Natureza.

Das plantas retiramos o remédio para combater nossos males. Cuidamos dos nossos rios e lagos. Enfim respeitamos a natureza, pois é dela que tiramos o nosso sustento de forma integral sem causar danos a nossa saúde e de forma racional para que não nos falte e não falte para as nossas futuras gerações.

Só que se não tivermos cuidados todo o nosso Povo incorrerá no mesmo erro das outras civilizações. Antes nunca houve registro de morte por desnutrição. Hoje sim, se forem nas aldeias que já tiveram contato com os não índios, principalmente nós Tupinambá de Olivença, percebemos claramente este quadro terrível – a fome.

Tomaram nossas terras, viciaram nossos índios, rotularam-nos como preguiçosos, negaram por décadas e décadas nossa identidade, perdemos a língua (o tupi), uma grande parte de nossa cultura, costumes e tradições, miscigenaram nossa raça. Poucos de nós ainda apresentam o estereótipo que agradam os não índios. Nos deixaram por um longo período sem rosto e sem voz, mas ainda hoje lutamos contra três armas ou entraves.

1. O Governo

Trata-nos como incapazes, fragmentam nosso Povo, utilizando-se de estratégias tais como o não cumprimento do artigo 231, 232 da Constituição, e o decreto 6001 art.17, e a não revogação de Decretos que favorecem fazendeiros e latifundiários, não aprovação do nosso estatuto, que até hoje ainda se encontra na gaveta, tornando-se peça obsoleta, políticas de assistencialismo desenvolvidas nas aldeias: cestas básicas insuficientes; insumos e implementos agrícolas de má qualidade, distribuídas fora de época e sem assistência técnica adequada. Prática de corrupção nas aldeias, não demarcação e homologação de nossas Terras em tempo hábil, sem haver necessidade de derramamento de sangue ou geração de conflitos.

2. Mídia

Apresentam-nos à sociedade como se fôssemos selvagens, ou primitivos. Objetos de admiração porque somos exóticos. Ou seres do outro mundo.

Por desinformação da grande maioria ou falta de interesse continuam nos vendo como se ainda estivéssemos há 504 anos atrás. Acreditam ,que o índio para ser índio tem que ter cabelos lisos, pretos e longos, olhos rasgados, falando o idioma , semi-nus,usando arco e flecha, burduna, lança, zarabatana,tacape, etc .

Somos seres humanos, dotados de inteligência e sabedoria, habilidosos e articuladores, Temos nossa cultura, costumes e tradições, somos várias etnias, também avançamos no tempo, temos uma história, infinitamente bela de resistência. Votamos, pagamos impostos, enfim, temos direitos e deveres segundo algumas definições de cidadania:
. Todos os seres humanos são iguais perante a lei, sem discriminação de raça, credo ou cor.
. A todos cabe o domínio sobre seu corpo e sua vida.
. Todos têm direitos a um pagamento justo pelo seu trabalho ou a meios condizentes para garantir uma vida digna.
. Todos têm direito à educação, a habitação, ao lazer,etc.

No entanto o fato dos direitos do cidadão estarem escritos na Constituição não garante que eles sejam respeitados, e não garante também que o cidadão cumpra com os seus deveres. Inúmeras pessoas estão sem casas, sem emprego, sem comida, sem saúde, sem educação, sem rosto e sem voz.

Agora companheiros! Todas mudanças nascem de um sonho, desde que esse sonho, que no início era de uma pessoa apenas, venha se tornar o sonho de muitos. Como dizia o Cardeal e pensador humanista Dom Hélder Câmara, ¨Sonho que se sonha só é só um sonho. Mas sonho que se sonha junto torna-se realidade¨.

Para as autoridades deste país vai um pensamento nosso: não queremos ser grandes, não queremos ser pequenos. Queremos os nossos direitos garantidos.

MARIA JOSÉ AMARAL BRANSFORD
Representante indígena-Tupinambá de Olivença