Quando nós vivíamos na cidade de Colégio, na rua dos índios, alguns brancos passavam nela, poucos amigos, negociante para vender a prestação, fazendeiros atrás de gente para trabalhar no campo a preço abaixo do mercado; também tinha aqueles com laço de amizade. Muitas vezes jogávamos bola no campinho do Cordeiro com meninos de várias ruas, formando times de pelada. Muita amizade nessa época de 12 anos.

Com o passar dos tempos, cheguei até a visitar a casa deles. Conheci outras pessoas que me perguntavam se eu era caboclo; respondia que era índio. Outros perguntavam quem era meu pai e eu dizia que era filho do Alírio, aquele que vendia peixe. Eles diziam que conheciam meu pai, que ele era gente boa, mas tinha caboclo onde eu morava que eles não gostavam: comem moroba, bobó, andam sujos, bebem cachaça: “aquele povo é imundo, cheio de confusão, querem tomar as terras”. Eu ficava ofendido; não gostava quando falavam isso da minha gente. Eu rebatia e discutia com eles.

Nesse momento, moderavam: “não é com você não; nós sabemos que tem muita gente de bem como você!” Esse só foi um caso, mas muitas vezes repetiu-se com outras pessoas da cidade com relação aos índios, às vezes, com zombaria, humilhação e até brigas. Mas reconheço que tem pessoas amigas lá e em outros lugares, que nos compreendem.

Nossos quintais na rua dos Índios, cada um tinha uma cerca de madeira no fundo, com um portãozinho ao lado. Dava para a lagoa do Cordeiro, que banhava em círculo os quintais das outras ruas: Santa Cruz, Dr. Clementino do Monte. Na margem da lagoa, a vegetação era um pouco baixa: existia velame, pipeira, ingazeiro, marizeiro e ramagens.

A meninada gostava de brincar de cozinhada, em que cada um dava um pouco para fazer a misturada. As meninas davam as panelas, sal e arrumavam lenha, além de varrerem o pé do velho ingazeiro. Os meninos saiam para o mato para colher frutos silvestres e caçar passarinhos de peteca e apanhar sardão e os outros temperos do mato: tomatinho, alfavaca, ciguleira, maxixe. Os meninos eram quem mais suavam para arranjar a mistura. Mas aquela lagoa era farta, além do peixe; os moradores jogavam lixo nos fundos dos quintais e ali nasciam verduras e legumes das sementes jogadas fora.

Quando tudo estava arranjado, os meninos levavam a caça, a pesca e a colheita para que as meninas começassem a cozinhada; elas tratavam do preparo dos alimentos e cozimento. Após as tarefas cumpridas, a menina maior do grupo era quem fazia a divisão, colocando nos pratinhos de barro, ou em cacos de potes quebrados, a comida de todo o grupo, e todos saiam satisfeitos com a brincadeira.

Fazíamos pequenas canoas de raiz de timbauba, colocávamos um pano para pegar corrida na lagoa do Cordeiro. Mas as brincadeiras eram por época; às vezes demorava muito tempo para uma acontecer. No tempo do caju, brincávamos com a castanha: colocando uma encostada na parede, tentávamos acertar e quem conseguia ganhava todas as castanhas jogadas. Quando apareciam os ventos, em certa época do ano, fazíamos pequenos corta-ventos colocados numa vara suspensa com a mão. Na safra do milho, as meninas brincavam com as bonecas que nascem no pé.

Uma outra brincadeira… Um menino segurava um pedaço de pau lá na beira do rio e gritava: “galinha gorda!” Os outros respondiam: “gorda!” Aí, ele continuava: “para o meio ou para a beirada?” Os outros respondiam: “para o meio!” Ele sacudia o pedaço de pau bem no meio das águas e todo mundo começava a nadar para ver quem era o mais rápido nadador.

Também no rio, tinha a brincadeira de derrubar: eram dois pares de meninos, com o grande colocando o menor nos ombros, ambos em pé, com água na cintura; começava a luta entre os que estavam em cima; quem derrubasse seria o vencedor. A minha brincadeira predileta era atirar com uma lança de madeira para acertar o pé de mamoeiro da minha avó Júlia. Na aldeia só tinha um pareio para disputar comigo: era o meu primo Joelton, filho de Tio Jó (Josival). Gostava muito de fazer um alvo, mesmo no chão e atirar a lança para o alto e acertar no círculo riscado com uma pedra.

O jogo da peteca, feita de palha de milho com pena de pato, era uma roda de meninos batendo com o brinquedo na palma da mão, sem deixar cair. Aquele que derrubasse sairia da brincadeira, ficando no final só dois para disputar a vitória. Eu mesmo não era muito bom nessa brincadeira, perdia todas.

De cima do barranco, avistávamos o rio São Francisco, com suas águas verdes descendo em direção ao mar; olhando para o meio, percebíamos umas pequenas ilhas que as pessoas chamavam de croas de areias claras, com vegetação espinhosa denominada calombi; quem lá ia de canoa, encontrava o capim grande; era o caniço com que nosso povo costumava pescar quando o peixe era abundante. Olhando adiante, na margem direita está o estado de Sergipe; pés de ingazeiras sombreavam o outro lado.

Quando morávamos lá naquela rua dos Índios, não existia o cais de pedra; só tinha o barranco alto, escavado pelas águas do rio ao longo dos séculos; a beira era de uma areia fina, meio amarelada, pequenas pedrinhas alvas como as nuvens do céu; cardumes de peixes remexiam as águas, pulavam como se estivessem brincando. Este rio é um grande espelho do sol e da lua; onde refletem as suas luzes no horizonte estão os pequenos montes; do lado de cá, onde está nossa cidade, só tem casas beirando o rio.

Acima da rua onde morávamos, estavam canoas de pesca amarradas com cordas em troncos fincados n’água; continuando mais além, o morro de São Caetano, marco tradicional de nossa terra. Da calçada do antigo Posto dava para ver a serra da Apreaca.

A escola da aldeia fazia parede com a nossa casa; dava até para ouvir as aulas da professora Terezinha Wanderley, uma branca da cidade de Colégio. Por ansiedade de estudar, pedia a meu pai que queria. Ele, pela minha insistência, foi na mercearia de seu Antônio Donato e comprou um ABC de cor vermelha e deu para mim. Mamãe foi à escola comigo e falou: “comadre Terezinha, bote o José para estudar com os outros meninos; a vida dele é me aperrear”. Dona Terezinha me colocou na turma da manhã; ainda me lembro: as carteiras eram daquelas que acomodavam quatro alunos.

Antes das aulas, tínhamos de dar bom dia à professora, rezar Pai Nosso e Ave Maria. O uniforme era bermuda marrom com suspensórios e camisa xadrez, fornecido pela FUNAI, como também caderno, lápis e borracha, além da merenda escolar: sopa ou leite.

Um ano depois, já estudava a cartilha e começava a formar palavras. Na hora do recreio ensinavam as brincadeiras da cidade. De manhã, o zelador abria e varria; era o índio Francisco Tamoné (Zé Gatinho) e também chegava a cozinheira, também índia, a velha Marieta.

Quando eu tinha oito anos já estudava na 1ª série e cada vez mais gostava de estudar; meus pais sempre davam uma força; já os outros, tinha deles que seus pais os tiravam da escola para ajudar na cerâmica ou nas roças.

A pobreza era dominante nessa rua. Muitos deixavam a escola. A professora reclamava ao chefe do Posto, Ademir, mas não adiantava; ele dizia: “o que é que eu vou fazer?” Os alunos, muitos deles, é quem ajudam os pais na agricultura; as meninas também auxiliam as mães a cuidar dos irmãos menores, lavam pratos; outros vão para as lagoas buscar barro para a cerâmica da mãe.

Aquela rua era nossa aldeia, onde o povo morava, onde era possível viver como índio; a união nos dava resistência. Esse lugar foi para mim especial, lá onde nasci e me criei entre parentes: nossa comunidade viva e ativa. Quando um casal precisava de morada, todos se reuniam para construir a habitação, da criança ao mais idoso faziam parte do mutirão. Na limpa das roças nas terras da Colônia, o processo era o mesmo; pessoas se ajudavam.

Nosso povo era amigo na alegria e na dor; quem arrumasse uma coisa que o outro necessitasse, dividia no meio para fome não passar. Em tempos de crise, viajavam dois índios, Pitombo e Zé da Morena, procurando serviço com os fazendeiros Pedro Chaves e doutor Ercílio, todos de Sergipe; na volta à aldeia avisavam que tinham trabalho para um mês inteiro.

Na doença de alguma pessoa, homens e mulheres iam visitar; o paciente se alegrava mesmo ali sofrendo, lágrimas nos olhos a rolar gemendo. No inverno, água na rua correndo, poças, pedras e lama; meninos na chuva pulando, cantando e patos ali brincando.

Dos momentos ali vividos jamais vão se acabar lembranças, imagens… Vozes, gritos e lamentos estão registrados no tempo. O solo daquela rua guarda um pedaço da nossa história: cacos de panelas, potes e ossos, umbigo de menino novo, restos da cultura material… O sol ainda é o mesmo; estrelas no mesmo lugar; o rio ainda passa, agora beirando um cais… O mundo não para nunca de circular.

Nessa rua dos Índios tinha duas partes em sua definição social: o lado baixo, que era chamado rua de Fora e a parte alta, denomina rua do Alto; havia uma pequena baixa no meio, por onde as águas das lagoas Grande e Cordeiro se encontravam nas épocas da cheia do São Francisco. Nesse ponto, chamava-se Baixinha.

No alto moravam Antônio Tingá e Manoel Preto, melhores cantadores de Toré. Firmino Pires, casado com Selé, irmã de meu avô Euclides também morava lá. Firmino Pires, foi o melhor piloto de canoas; era o filho mais novo do antigo cacique Inocêncio Pires. Ainda no alto morava Lorinda, anciã de grande sabedoria, filha de Nezinho e bisneta de Pedro Lolaço.

Na rua de Fora morava Analbertino, tio de minha avó Júlia; também era filho de um ancião muito respeitado. Perto dele morava o cacique Otávio, casado com Iria, maior rezadeira da região; todos os dias chegava em sua casa muita gente de fora para ser curada das doenças. Uma das melhores ceramistas era a velha Luiza, que decorava com pinturas de argila branca as mais belas figuras nos potes.

O cacique Otávio Queiroz Nidé era irmão do pajé Francisquinho, por parte do pai Manoel de Queiroz, bisneto de João Maromba, chefe religioso dos Xocó entre 1899 a 1913. Manoel de Queiroz, portanto, era filho de Gregório Maromba, um dos filhos de João Maromba. A liderança de Otávio teve início após sua escolha, em 1944, após a morte do antigo cacique Kariri Jonas, também seu parente. Todos os índios da aldeia tinham uma atenção especial ao cacique Otávio, porque sua dedicação na tradição o tornara respeitado internamente e dera exemplo à comunidade indígena: o cacique é aquele que ouve as decisões dos órgãos internos (Conselho Tribal), chefes de família… Junto com o pajé examina o ponto de vista viável, executando a ordem estabelecida.

Numa aldeia, o cacique deve visitar todas as casas, ouvir problemas ao longo do tempo, dar atenção às crianças, aconselhar os mais inexperientes, conscientizar que o povo indígena só sobrevive coletivamente em união das pessoas. Otávio, através de sua observação social, dava nomes às pessoas da aldeia de acordo com a característica comportamental do indivíduo a denominar. Por exemplo, um menino que tomava banho no rio e era muito veloz na habilidade de nadar, o cacique dava-lhe logo o apelido de piaba (peixe do rio) e todas as pessoas reconheciam socialmente a identificação, denominação do indivíduo. Agora eu digo que cada povo tem o doutorado em sua cultura, porque somente ele pode saber sua origem, o que quer, o que sente, o que busca e para onde vai seguir.

O homem que mais trabalhava em madeira era José Taré, grande artesão que fazia as maiores obras de arte, até por encomendas: tacapes, carrancas, móveis. Ele tinha a marcenaria como profissão. Otávio, maior contador de história indígena da época, chegava lá em casa à noite, como os outros velhos, para contar fatos passados e eu ficava ouvindo — deitado numa esteira de piripiri — até dormir. Alí ficavam até 11 horas da noite; quando a lua estava alta, as pessoas iam se acomodar, dormir no silêncio da noite, a não ser algum menino que chorava para mamar. Numa aldeia, as mulheres conhecem as crianças mesmo sem vela, só basta ouvir seu choro e uma diz: “aquele é fulano, filho de fulana”.

Na esquina da rua morava o chefe Paulo Austragésimo da FUNAI, no próprio Posto Indígena, do qual tenho boas recordações por ser uma pessoa amiga das crianças. Introduziu na escola o esporte do vôlei, a quadrilha junina, o forró, o desfile de 7 de Setembro e a premiação dos alunos, do 1º ao 3º colocado pelas melhores notas no final do ano pela aprovação. Na lagoa do Cordeiro em época de pescaria, Laudilina, irmã do pajé Francisquinho, era a índia que mais pegava peixe de mão: cará, traíra e outros.

Resistir era preciso; Josival, irmão de meu pai, nunca perdeu uma briga na cidade com aqueles que queriam maltratar os índios, mas nunca matou ninguém; só dava uma lição nos brancos provocadores.

Na época da folia do carnaval, na zoada, a cidade de Colégio não parava nem de dia e nem de noite. Homens mascarados, cada um a seu modo, outros banhados em pó de maizena, acompanhados sempre por uma batucada. Andavam de rua em rua; pela nossa também passavam os rapazes da aldeia. Nossa rua era modesta; os mais velhos só observavam; muitos nos aconselhavam, falavam que essa festa não era abençoada, que o rebuliço foi o cão que inventou. Diziam que muitos deles se fantasiavam só para dar uma lapada; não era bom que se participasse disto.

A colheita das roças coincidia com a festa junina, milho verde, feijão e abóbora: tempo de fartura. Todos os anos o rio enchia com as enxurradas; desciam rolos de pau pela força da água, meninos e meninas pegando para fazer as fogueiras troncos, galhos, árvores que desciam do sertão.

Em noite de São João, os pais compravam roupas para os filhos, traques, chuvinha e bombas. As mulheres faziam canjica, pamonha, mungunzá; na fogueira, carne e milho verde na brasa. Na escola, as carteiras eram tiradas da sala e às 8 horas começava o Toré; durava a noite toda, até amanhecer. No Toré estavam pessoas de todas as idades.

Os índios que moravam na Colônia também vinham participar. Não tinha nada de forró. A rua dos Índios estava toda iluminada, as fogueiras acesas, os mais novos soltavam fogos. Todos os índios de roupa nova. Em nossa casa, tudo já estava providenciado: arroz doce, peixe assado, roupa de meus irmãos. Papai comprava pano em Propriá: a costureira era Lizete, branca da cidade de Colégio. Nesse dia de festa, papai ia buscar a roupa na medida, colocava em cima da cama e todos nós vestíamos logo cedo para andar na rua.

A festa de Natal comemora o aniversário de Cristo e era visto na rua dos Índios com grande respeito. Os pais preparavam os filhos com a melhor roupa para a missa na Matriz de Nossa Senhora da Conceição. Antes da Missa do Galo começava o Pastoril no coreto da praça Godilho de Castro, centro da cidade, bem em frente à Igreja. As moças que faziam as cenas eram todas brancas. Papai Noel distribuía presentes às crianças na praça. Eu ganhei um carrinho de plástico azul; fiquei muito contente. A meia-noite começava o foguetório; eu ficava com medo e tinha pavor de fogos de artifício. Mamãe dizia que eu não devia chorar: a noite de Natal era para sorrir, pois foi nessa noite que Jesus nasceu.

Nossa professora Terezinha, nas aulas ministradas na escola da aldeia, ensinava aos alunos orações cristãs; incentivava meninos para a missa do sábado e do domingo. Como eu estudava na 3ª série e tinha 10 anos, acompanhava a turma para a Igreja. O vigário da paróquia era o padre Hildebrando. De manhã, os sinos tocavam e mamãe me acordava: “José, levante! Vai tomar um banho no rio! Tome o café para ir à missa! O sino já deu a primeira badalada!”

Pedia-lhe a benção e ela me abençoava. Vestia a roupa, calçava as congas azuis com uma meia branca. Papai me dava moeda para comprar pipoca. Meu primo César Girir chegava lá em casa com os meus colegas de classe: Lenoir, Djalma, Vilma… Alguns iam acanhados por terem uma roupinha fraca com relação aos brancos da cidade, sempre bem vestidos e calçados.

Nossa família nunca perdeu uma procissão; muitos índios também faziam o cortejo, junto com o pessoal da cidade, a começar na Semana Santa: na participação nas Estações, Senhor dos Passos eu ia junto com meu pai e a outra procissão seguia outras ruas com as mulheres acompanhando Nossa Senhora das Dores; minha mãe ia nesse grupo, com algumas índias, junto à imagem.

No mês de agosto, dia 16, era a procissão de São Roque, o padroeiro da cidade desde 1911, quando teve uma cólera na região de Colégio, o padre fez uma promessa e a epidemia acabou. Desde essa época São Roque ficou como padroeiro pela graça alcançada. Houve muitas vítimas e entre elas os índios.

No dia 29 de novembro começava a primeira noite de novena, festa da padroeira da cidade, organizada por cada classe social e com direito a uma noite. Esse período era aguardado com muita ansiedade pela sociedade colegiense. Todo mundo do município fazia economia para comprar boas roupas e ter dinheiro no bolso para gastar na festa. A procissão era no dia 8 de dezembro, às três horas da tarde, e a noite era dedicada aos índios.

Na praça Rosita de Góes Monteiro ficava o parque de diversões; meu pai sempre nos levava para andar nos aviões, patinhos e roda gigante, além de comprar baganas após o encerramento da procissão.

O Ouricuri, na minha época de menino, era uma grande mata fechada que cobria vasta área dos atuais municípios de Porto Real de Colégio e São Brás, no território indígena imemorial. Nessa floresta existiam várias espécies de vegetais e animais em abundância. O caminho que levava ao interior da mata era uma pequena vereda, onde existia a aldeia tradicional com casas de palha, em que nosso povo ficava vários dias no ritual religioso indígena. Esse cerimonial é sagrado; não pode ser revelado aos brancos; somente aos índios que nascem na tradição de preservar a cultura original de nosso povo indígena Kariri-Xocó. Além dessas tribos, outros grupos indígenas podem assistir ao ritual: os Fulni-ô, Tingui-Botó e parte dos Karapotó que vivem na área.

Eu saía para o interior da mata junto com Joelson, o meu amigo e primo, à procura de frutos silvestres. O cheiro da gabiroba, ubáia, maracujá nos fazia identificar onde encontrar. Árvores altas e sombrosas, como o angico, a baraúna, dominavam a paisagem. O som dos pássaros nos pedia para escutar seus cantos. Andar nessa floresta exigia muito cuidado; cobras ficavam escondidas nas folhagens, aranhas e escorpiões eram o perigo maior.

Hoje está diferente, mata devastada, os animais estão sumindo, lenhadores e caçadores ofenderam a natureza. Fico triste quando olho; aquela mata linda que existia pede socorro para as pessoas replantar a vegetação, preservar o que existe para os animais novamente voltarem. O Ouricuri é conservar o que Deus nos deu.

Quando eu tomei consciência de estar no Ouricuri senti uma diferença; morávamos numa rua sem mata e o barulho era constante: carros buzinando, músicas nos rádios, pessoas estranhas sempre passando nesse beco em aperto. Quando eu era criança, lembro que uma vez chegou o meu cunhado Juarez, parou na porta com uma carroça de burro, desceu e disse: “dona Lurde, seu Alírio mandou levar as coisas para o Ouricuri”.

Subimos na rua ladeirada; os índios também estavam no mesmo reboliço, carga na cabeça, trouxa e meninos nos quartos, esteiras debaixo do braço. Saímos pela rua da Aurora, pegamos um caminho ermo; o sol estava se pondo… Passamos pela cidade; as luzes cada vez se afastavam. Chegamos numa mata escura, a estrada era como quê um túnel de ramagem. Perguntava a Juarez: “que canto é esse?” Ele me dizia: “não tenha medo; isso é a coruja!”

Finalmente nós estávamos numa nova aldeia de forma circular, as casas eram de palha e não tinham compartimentos. Perguntei a ele porque nós vínhamos para ali e ele respondeu: “Zé, aqui é o Ouricuri; muitas vezes você veio quando era mais pequeno!” Foi aí que tomei consciência de que aquele lugar não era estranho. Ele foi logo nos descendo, as coisas tirou também, colocou num ranchinho de palha e depois a mamãe chegou.

A mamãe me dizia que no tempo dela o mato era maior; cobras atravessavam a estrada, raposas também cruzavam, o dia parecia noite pela sombra das árvores. Nossos ranchinhos de palha de Ouricuri ou de arroz, o gado dos fazendeiros quando nós não estávamos lá derrubava a casa e comia a cobertura; em nossa chegada, tudo estava no chão.

Em noite de inverno se fazia um amparo com esteira de periperi para agasalhar os meninos; a chuva não parava, a água escorria por debaixo, nós agüentávamos por amor à tradição. Crianças ficavam roxas de tanto frio que passavam; se fazia um foguinho para enxugar a roupa molhada, aquilo era uma benção; ninguém vivia doente, as pessoas eram sadias porque estavam acostumadas.

Aqui, nos problemas de saúde ocorridos com as crianças, as mães sempre resolvem, quando a doença é simples, com chás de ervas ou uma simpatia. A papeira, sempre se cuidava com casinha de maribondo feita de barro nas paredes; quebrava em pedaços e fazia uma pasta colocando no rosto. Pronto, esse era o remédio.

Para o sarampo se arrumava fezes de cachorro; estando seca, amarrava em um paninho e colocava para esquentar numa panela com água; era só tomar o chá. A frieira que se dá nos pés, mãos, não tem complicação, pois a pessoa mesma se cuida: é só mijar no pé. Em caso de diarréia, toma-se o chá da folha de goiabeira, pegando as folhas do olho ou raspa de arapiraca. Dor de cabeça, ela, minha mãe, sempre cuidava com mata-cabra, amarrando na cabeça. Casca de aroeira é bom para cicatrização. Para surdez, é bom coçar o ouvido com rabo de tatu; na queimadura, clara de ovo.

José Nunes de Oliveira é índio da tribo Kariri-Xocó, localizada no município de Porto Real do Colégio, Alagoas, conhecido com seu nome indígena Nhenety Kariri-Xocó.