Por: Prof. Dr. Carlos José F. dos Santos

Universidade Estadual de Santa Cruz

Olivença Território Tupinambá – Bahia

E que talvez a gente fosse um povo como a folha cai. E que a nossa cultura, os nossos valores, fossem muito frágeis para subsistirem num mundo preciso, prático: onde os homens organizam seu poder e submetem a natureza, derrubam as montanhas” (Ailton Krenak)

Não alimentamos ilusões com a cúpula da Rio+20. É preciso não esquecer que o evento oficial é promovido pelo ONU, pelos governos, estados e apoiado por setores de organizações econômicas. Pensamos que em sua dimensão oficial o evento oculta a luta por mudanças estruturais na sociedade. Tanto é que as negociações sobre o documento oficial e final são feitas por delegados e técnico ligados aos governos dos estados nacionais.

Perguntamos então: qual a legitimidade dos mesmos para decidirem políticas ambientais globais que envolvem nosso presente e futuro? Por serem representantes estatais de governos cuja legitimidade advém de uma representatividade eleitoral questionável por decorrer da influencia do poder econômico? Não podemos esquecer que o modelo de discussão adotado pela Rio+20 tem uma trajetória marcada por outros eventos, seguindo este mesmo formato de “representatividade” governamental-estatal.

Vale lembrar:

A Conferência das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento Sustentável, batizada de Rio+20, marca os 20 anos da Eco-92, a cúpula sobre meio ambiente realizada no Rio de Janeiro em 1992. Faz parte do ciclo de conferências ambientais da ONU, que teve início em 1972, em Estocolmo, Suécia. A Rio+20 reunirá, mais uma vez, chefes de Estado e de governo e entidades da sociedade civil (ONGs, universidades, institutos) para revisitar os principais temas, protocolos, convenções e recomendações que resultaram da Eco-92. Entre eles estão a Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento; a Agenda 21; e as convenções-quadro sobre Mudanças Climáticas, Biodiversidade e Combate à Desertificação” (In: folha.uol.com.br: O que é a Conferência Rio+20?).

Lendo este breve histórico outras indagações aparecem: será que esta maneira de discutir o chamado “desenvolvimento sustentável” é o caminho, após 40 anos de seu início em Estocolmo? As alterações que ocorreram durante e depois de quatro décadas foram positivas? Aliás, é preciso ainda continuar desejando um “desenvolvimento sustentável”? Na nossa concepção são necessárias mudanças estruturais que nos conduzam a outra sociedade, diferente da que chamamos de capitalismo. Afinal de contas a devastação da natureza ocorre fundamentalmente para atender supostas necessidades humanas derivadas do modo de vida estimulado pelo sistema socioeconômico e político atual.

Entretanto, antes que nos questionem: não seria pior sem estas ações promovidas pela ONU e governos estatais? Entendemos que a situação só não é pior em decorrência de uma possível crise econômica e social gerada pela destruição ambiental. Ou seja, não é só um receio em relação a degradação do meio ambiente natural que move o evento da ONU. O que preocupa a cúpula oficial é: como podemos manter o atual sistema socioeconômico diante da destruição ambiental.

Lendo as falas dos que formam a cúpula vem à tona que: a natureza não é o foco em si, mas a manutenção do sistema em que vivemos. Por isto falasse tanto em “desenvolvimento com sustentabilidade natural”. Nesta direção, após 40 anos de Estocolmo, pensamos que as ações da ONU e governos/estado são respostas tímidas, ao ponto do próprio secretário-geral da conferência, Sha Zukang, assinalar que:  “a ONU pede que negociadores formulem documento final ambicioso” (Site da Rádio CBN).

Porém, apesar da solicitação de Sha Zukang, muito das tais “metas sustentáveis”, – que, na nossa leitura, em si não são soluções e sim paliativos –, sofrem o perigo de não fazerem parte do documento final e nem serem alcançadas, como afirma Sérgio Abranges, comentarista da Rádio CBN: “não é possível decidir metas sustentáveis durante a Rio+20. (…) Falta clareza política e técnica sobre as metas globais que serão discutidas na conferência da ONU” (Site da Rádio CBN).

Além disso, vale destacar a ausência de alguns dos governos de estados mais responsáveis por políticas de devastação, como o da Alemanha: “Ex-ministro francês indicado pela ONU para coordenar a Rio+20, Brice Lalonde diz que Alemanha sairá enfraquecida das negociações e pede mais objetividade no Rascunho Zero” (Site da Rádio CBN). Entretanto, mesmo que todos os governos e estados estivessem presentes, quem garante que as decisões da Rio+20, apesar de paliativas, seriam acatadas? Então porque as decisões devem ser tomadas por uma cúpula de delegados?

Ainda que reconhecendo a necessidade de conhecimento técnico/especifico em vários dos temas, – o que não deveria significar que somente alguns podem discutir por deter tais informações -, é preciso colocar estes saberes a disposição de outra visão de mundo e sociedade. O conhecimento não é neutro, imparcial e um dado desconexo. Ele (conhecimento) pode ser utilizado atendendo interesses coletivos e/ou particulares[1]. Em outras palavras: não é o homem que precisa ficar a mercê do conhecimento e sim o conhecimento ficar disponível a vida humana e natural.

Enquanto isto o evento será recheado por novas ideias numa espécie de shopping de inovações alternativas de sustentabilidade: “Salas temáticas tratam de biodiversidade. Circuito fica em estrutura metálica sustentável” (Site da CBN). Discussões estruturais correm o perigo de serem dissimuladas em meio à uma chuva de supostas propostas inovadoras. Neste sentido, vale olha a página da FolhaUol, dedicada ao evento, para perceber um pouco do clima de contemplação que se tenta criar: http://www1.folha.uol.com.br/especial/2012/rio20/

Sabemos que as alterações profundas que desejamos não serão feitas pela ONU e pelos governos existentes – não possuímos esta ilusão. Conferências de cúpulas governamentais oferecem “soluções” efêmeras para conter a crise ambiental e social gerada pelo atual sistema econômico e político. O que procuramos aqui é reforçar a seguinte ideia: somente com a luta cotidiana local/global dos que desejam outro mundo é que as mudanças para uma nova sociedade irá acontecer. Em particular: somente a mobilização dos povos indígenas por seus direitos é que irá contribuir para a preservação da natureza.

Não estamos dizendo que as coisas continuaram as mesmas, – sempre irão ocorrer alterações –, mas sem pressão social as transformações para o fim das agressões à natureza e combate à pobreza irão fracassar. Refletimos que a discussão sobre a proteção ao meio ambiente natural não é distinta do debate sobre a alteração estrutural da atual ordem econômica e política, marcada pelo sistema capitalista. A natureza, os povos indígenas, as diferentes comunidades tradicionais e os que vivem na pobreza, bem como os que lutam por outra sociedade, continuaram marginalizados se não extinguirmos a atual ordem socioeconômica.

Contudo, paralelo ao evento oficial, ocorrem fóruns e manifestações alternativas à atual economia e política global, tais como: “Cúpula dos Povos”; “Xingu+23: um encontro paralelo – é necessário – à Rio+20”;  e o guerreiro “Acampamento dos Povos Indígenas – Terra Livre”. Mesmo de longe ficam nossas energias para que os parentes façam valer as forças ancestrais, mas que não se iludam com as possíveis promessas dos que estão no poder político e econômico mundial e nacional, desejando dissimular a necessidade de mudanças profundas na forma do homem se relacionar com a natureza e com outros homens.

Queremos sim eventos discutindo a natureza e a humanidade, como o “IX Acampamento Terra Livre (ATL) – A Salvação do Planeta está na Sabedoria Ancestral dos Povos Indígena”.  Pensamos que as decisões a serem tomadas deveriam ter como parâmetro a forma ancestral pela qual os povos indígenas se relacionam tradicionalmente com a natureza: Terra Livre para os Homens e Mulheres serem também livres. Não é a natureza que depende de nós e sim nós que dependemos dela. Caso continuemos maltratando o meio ambiente natural em nome de um “desenvolvimento sustentável”, quem irá nos destruir será a natureza.

Fica então a sabedoria indígena a nos ensinar na fala de Ailton Krenak. Leia como se você fosse parte do “povo como a folha cai” :

“Alguns anos atrás, quando eu vi o quanto que a ciência dos brancos era desenvolvida, com seus aviões, máquina, computadores, mísseis, eu fiquei um pouco assustado. Eu comecei a duvidar que a tradição do meu povo, que a memória ancestral do meu povo, pudesse subsistir numa mundo dominado pela tecnologia pesada, concreta. E que talvez a gente fosse um povo como a folha cai. E que a nossa cultura, os nossos valores, fossem muito frágeis para subsistirem num mundo preciso, prático: onde os homens organizam seu poder e submetem a natureza, derrubam as montanhas. Onde um homem olha uma montanha e calcula quantos milhões de toneladas de cassiterita, bauxita, ouro ali pode ter. Enquanto meu pai, meu avô, meus primos, olham aquela montanha e veem o humor da montanha e veem se ela está triste, feliz ou ameaçadora, e fazem cerimônia para a montanha, cantam para ela, cantam para o rio … mas o cientista olha o rio e calcula quantos megawatts ele vai produzir construindo uma hidrelétrica, uma barragem.

Nós acampamos no mato, e ficamos esperando o vento nas folhas das árvores, para ver se ele ensina uma cantiga nova, um canto cerimonial novo, se ele ensina, e você ouve, você repete muitas vezes esse canto, até você aprender. E depois você mostra esse canto para os seus parentes, para ver se ele é reconhecido, se ele é verdadeiro. Se ele é verdadeiro ele passa a fazer parte do acervo dos nossos cantos. Mas um engenheiro florestal  olha a floresta e calcula quantos milhares de metros cúbicos de madeira ele pode ter, Ali não tem música, a montanha não tem humor, e o rio não tem nome. É tudo coisa. Essa mesma cultura. Essa mesma tradição, que transforma a natureza em coisa, ela transforma os eventos em datas, tem antes e depois. Data tudo, tem velho e tem novo. Velho geralmente é algo que você joga fora, descarta, o novo é algo que você explora, usa. Não há reverência, não existe o sentido das coisas sagradas. Eu fiquei com medo. Eu fiquei pensando: e agora?” (Ailton Krenak)

Força aos guerreiros presentes na Rio+20…

AWERE!

Por: Prof. Dr. Carlos José F. dos Santos

Universidade Estadual de Santa Cruz

Olivença Território Tupinambá – Bahia

 

– Aldeia Karioca:

http://g1.globo.com/natureza/rio20/noticia/2012/06/indios-acendem-fogo-sagrado-para-abrir-conferencia-sustentavel-no-rio.html

– IX Acampamento Terra Livre (ATL) – A Salvação do Planeta está na Sabedoria Ancestral dos Povos Indígena:

http://apoinme.org.br/2012/06/confira-a-programacao-do-atl-2012/

– Xingu+23:

http://www.xinguvivo.org.br/x23/

– Cúpula dos Povos:

http://cupuladospovos.org.br/


[1] Sobre este assunto, entre outros autores, indico a leitura de alguns dos trabalhos de Michael Foucault: As palavras e as Coisas; A Arqueologia dos Saber; e Microfisica do Poder.