Esta matéria é uma colaboracao de Abel Kanaú da CESE

Nós vamos colorir Brasília!
Vamos mostrar nossas cores, nossas pinturas e gritar nossos direitos!

(Marcos Apurinã)

Foi assim, brilhante e inflamado, que o jovem Marcos Apurinã abriu o Abril Indígena 2008, no Acampamento Terra Livre, que teve como plenária um colorido circo, cercado de malocas de lona preta, erguidas sob varas de bambu, na Esplanada dos Ministérios, abrigando oitocentas e cinqüenta homens, mulheres, jovens e crianças representantes de 240 povos indígenas brasileiros, falantes de 180 línguas.

Entre o colorido do circo, contrastando com a taba de lona preta, no horizonte da Esplanada dos Ministérios, a catedral e o prédio redondo com anéis de saturno da recém inaugurada Biblioteca Nacional. Neymaier, lona de plástico, Congresso, índios e denúncias de violências, chacinas, infanticídio e racismo tiveram que conviver durante os quatro dias que marcaram o Distrito Federal, às vésperas do aniversário da capital do Brasil, moderna, planejada e farta de cimento e concreto, no meio do Planalto Central. A estrutura para a festa do aniversário de Brasília, no dia 21 de Abril, também estava sendo montada. Esta sim, de metais cintilantes, vindos de alguma mineração escavada sob a floresta amazônica, possivelmente de território indígena. Tão diferente das armações de bambu, frágeis, que abrigava as etnias, no mesmo gramado.

Este ano o evento tinha uma motivação mais forte: denunciar e tentar reverter a suspensão da retirada dos arrozeiros da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, por pressão dos invasores ao Governo Federal. Quando a instância máxima deliberativa de um País manda parar com a retirada dos invasores de um território indígena homologado pelo presidente da República põem na mesma situação de risco todos os territórios até agora homologados. E não terras dos índios. São terras da União! Eles estão defendendo territórios de biodiversidades, que são de todos nós. Sobre os quais os indígenas têm somente o usufruto. Só para lembrar.

Lideranças históricas, forjadas à briga e sangue durante esses trinta anos de formação e resistência do movimento indígena, estavam lá com a mesma força na voz e a mesma indignação diante da, cada vez mais, violência e descaso que os povos

indígenas vêm sendo submetidos. Nailton Pataxó, Siã Kaxinawá, Jacir Macuxi, Iranildes Macuxi, Gersen Baniwa, Joênia Wapixana, Uilton e Sandro Tuxá, Neguinho Trucá, Luis Titiah, Marquinho Xucuru, Euclides Macuxi, Dourado Tapeba, Jecinaldo Sateré Mawé e tantos outros. E, também, uma legião de rapazes e moças de diversas etnias, presentes no picadeiro desse inusitado circo de denúncias. Eram agentes de saúde, professores, agentes agro-florestais, estudantes e professores, artistas, advogados e, até, um médico e uma médica indígenas recém formados, em Cuba. Jovens com um discurso tão límpido, maduro e comprometido, que acentuava ainda mais a beleza das indumentárias, dos grafismos desenhados nos corpos, expostos, mostrados com orgulho. Marcos Apurinã, o que gritou: – Vamos colorir Brasília! Faz parte desse novo time e viaja esta semana para Nova York, junto com uma comitiva indígena, para denunciar no Comitê Permanente dos Direitos Humanos da ONU o recrudescimento do racismo do Estado Brasileiro contra os povos indígenas. Maninha Xukuru estava presente num grande estandarte com seu rosto estampado, com microfone na mão e cercada de índias. Esse estandarte acompanhou todas as passeatas, ficou exposto no picadeiro do circo durante todos os debates e festas e subiu, também, a rampa do Congresso, indo parar atrás do presidente da FUNAI, durante toda a audiência com os parlamentares.

O picadeiro virou uma arena de discursos inflamados, mostrando a violência do Estado contra os povos indígenas. Marquinho Xucuru brigou pelo descaso com a educação denunciando que naquele exato momento estava acontecendo a Conferência Nacional de Educação, ali mesmo, em Brasília, promovida pelo MEC, e que os professores indígenas não foram convidados. Como se a educação indígena, diferenciada, não fizesse parte da realidade do MEC, disse ele.

Raposa Serra do Sol estava ali, representada pelo sempre guerreiro Jacir Macuxi e a advogada Joênia Wapixana, responsáveis por tantas denúncias de violação dos direitos indígenas, na ONU:

“Raposa Serra do Sol, depois da homologação, teve aldeias queimadas, índios assassinados, pontes queimadas, estradas obstruídas, escolas paradas e, ontem, soube que os professores indígenas foram espancados em Boa Vista. Queimaram doze casas e um malocão. Quando a gente esperava que tudo fosse dar certo, eles começaram a destruir tudo. Se tem lei para defender a violência, a gente também vai ser violento. Romero Jucá tem dito claramente: – Temos que defender os arrozeiros, construir a Hidrelétrica de Cotingo dentro da Raposa Serra do Sol e garantir a permanência da Vila Surumu. Quartiero, o líder dos arrozeiros já foi prefeito de Boa Vista e agora vai voltar a ser prefeito. Estamos nos preparando para enfrentar. Estamos se preparando para ocupar a nossa terra. ” Disse, com indignação.

Jecinaldo Sateré Mawé, da COIAB – Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira – evocou os participantes a contribuírem para uma mudança na mentalidade dos governantes, dizendo:

“Precisamos mudar o cérebro desse País. Esse tipo de decisão tomada pelo Supremo Tribunal Federal não prejudica só aos índios. Prejudica o povo pobre do Brasil. Porque a lei, aqui, é de classe social. Ricos fazem suas próprias leis e têm respaldo dos governantes. Esse mês de Abril é decisivo para a história dos índios do Brasil. Vamos resistir até o último índio, se for preciso, como disseram os parentes Macuxi.”

Patrícia Pataxó, estudante de direito na UFBA – Universidade Federal da Bahia – com coragem, criticou os meios de comunicação, lembrando que “a mídia, sempre às voltas com o sensacionalismo, tem dado uma cobertura obcecada ao caso da menina Isabela Nardoni, assassinada recentemente em São Paulo, enquanto dezenas de crianças indígenas morrem de desnutrição todos os dias,cercadas pelas plantações de soja no Mato Grosso do Sul, fato velado pela imprensa, porque não dá ibope. E noventa e duas lideranças indígenas assassinadas somente no ano passado, barbaramente torturadas, mortos à pauladas, queimados, esquartejados, em chacinas à mando de políticos e fazendeiros. Jovens se suicidam diariamente nas aldeias porque lhes foi tirado o direito de viver como indígenas. Mas isso não interessa divulgar! Traficantes como Cachola, Beira Mar e Marcola são protegidos. Esses não são bandidos. São do narcotráfico! Bandido é liderança indígena que luta por direito. Temos que criar um programa contra a discriminação indígena”. Argüiu.

E teve o velhinho Xucuru Cariri, da aldeia Mata da Cafurna, de Palmeira dos Índios, das Alagoas, como se apresentou, que disse:

“Podem me chamar de agitador. Eu articulei mais uma retomada, para a FUNAI adiantar a demarcação da nossa terra. Já vai para o sexto relatório de antropólogos. Tudo deixado pela metade. Nenhum concluiu. E nossa terra tá lá, até agora sem nenhuma solução. Eles mesmos mandam fazer os estudos e, depois, não querem cumprir com o que mandaram fazer.” Foi ovacionado pelos maracás, palmas e gritos de úhúúúúú!!!!

E um outro jovem indígena, que disse: “Os brancos – eu não gosto de dizer assim, porque isso dá discriminação – mas vou dizer assim mesmo: – Os brancos aqui em Brasília estão sabendo que a gente está reunido aqui nesse circo. O taxista me disse: -Porque é que os índios estão aqui, ao invés de estarem na aldeia? Eu não respondi porque achei que era uma provocação, uma coisa que nem merece resposta”

Surpresa também foram para as intervenções de Claudia Tikuna, esposa de Jecinaldo Sateré Mawé, artista, cantora de música indígena e mulher guerreira. Ela interpelou as mulheres a falar, mostrarem-se e assumirem uma posição de luta junto com os homens:

“A gente precisa mostrar que a gente não está atrás dos homens, dos nossos maridos, dos nossos companheiros. A gente está ao lado deles. A gente tem que mostrar que a mulher não é só fonte de prazer, cozinheira e mãe das crianças. A gente quer estar na luta, do lado deles. A gente tem que dizer: – Vão prá luta? A gente está aqui, do lado de vocês. Não queremos estar nem atrás, nem na frente. Queremos estar juntos”

Mas o picadeiro desse circo não foi lugar só de denúncias e comoções nesse final de tarde. Teve cantorias, danças de todas as tribos e cenas bem humoradas como a do velhinho Xucuru Kariri, o de Palmeira dos Índios, que fez o que chamou de “gracejá” do povo das Alagoas. Uma deliciosa cacofonia com a denominação dos povos. Principalmente com os dito “ressurgidos”.

“Tem surgido cada tribo estranha, não sei se assim, não sei se assá. Agora tem os Karadepote. Já viram índio Karadepote? E Karazul? Tem também Karapratrais, Pataxoca e Pataxoca Hã, Hã Hãe (se bolando no chão, imitando uma pata chocando ovos)”

O circo foi montado por uma tourpe de artistas, financiados por alguma instância governamental, que não entendi qual, e à noite brilhou num espetáculo presenteado aos participantes. Teve trapézio, malabarista, palhaço, dança do fogo, capoeira e maculelê. Tive certeza que os índios viram nas danças da tourpe a influência das suas. Depois virou toré, porancim, auê, mariri, forró e música sertaneja, até altas horas da noite.

A marcha para o Congresso

Como todos os anos acontece no Abril Indígena, eles se pintaram, se paramentaram, se armaram de bordunas e faixas e atravessaram a distância que separava o Acampamento Terra Livre dos prédios dos Três Poderes, correndo, cantando e sacudindo maracás. Subiram a rampa do Planalto para adentrar no Auditório Negro da Câmara dos Deputados. Foram barrados! Diferentemente do Abril Indígena do ano passado, quando 800 indígenas adentraram o auditório com ar condicionado, sentaram confortavelmente nas poltronas estofadas, tendo diante de si o palco com a mesa das autoridades, desta vez foram recebidos pelos parlamentares, meia dúzia deles, e na maioria integrantes da Frente Parlamentar de Apoio Indigenista, num arremedo de palco, no salão de entrada do Auditório Negro. Foram “desarmados”. Entregaram as bordunas e passaram a ouvir os discursos “comprometidos” dos parlamentares. Todos falaram lindo, puxaram suas origens, viraram descendentes de índios, ouviram com paciência as denúncias das lideranças e ficaram comovidos com uma manifestação das crianças indígenas do Mato Grosso do Sul, pedindo proteção e solução para seus parentezinhos que estão morrendo de desnutrição por causa do agronegócio, que o PAC – Programa de Aceleração do Crescimento – diz ser uma das soluções para a economia do País. Depois, foram saindo de fininho, alegando compromissos, e até o presidente da FUNAI se encantou, como dizem os amazônicos quando alguém desaparece. Restaram o presidente da Frente Parlamentar Indigenista e os índios. Indignados, desrespeitados, frustrados e cansados de denunciar para eles próprios e para as paredes do saguão do Auditório Negro, como disseram ao parlamentar. Voltaram para o Circo do Acampamento Terra Livre.

Se prepararam durante um ano, para serem recebidos assim. Foi humilhante!!

O troco no picadeiro

Conforme estava agendado, na manhã do dia seguinte teria um painel no picadeiro do circo com os ministros da saúde, da justiça, do meio-ambiente e da educação. E contaria, ainda, com outras autoridades como o presidente da FUNAI, Procuradoria Geral da República, Advocacia Geral da União (AGU), Secretaria Especial de Direitos Humanos e Presidência do INCRA. Seria com eles esse encontro. Porém, como disse um dos líderes, já idoso: – É o maior, com medo ou com vergonha de comparecê, que manda os menor representá. De fato, com exceção de Débora Duprat, da procuradoria Geral da República, todos os demais estavam ali representando seus chefes.

O primeiro anúncio frustrante foi dado por Sandro Tuxá, que esclareceu que o presidente Lula não poderia receber os índios na audiência que estava marcada para a tarde desse mesmo dia porque iria receber o presidente da Índia, com sua comitiva. Parecia uma piada! Receber os indianos ao invés dos indígenas.

Já que quem era para ouvir não estava ali, os índios deram o troco aos que estavam ali representando eles. E começou a enxovalhada. Sandro Tuxá disse que não estava nenhum pouco satisfeito com o que ocorreu no saguão do Auditório Negro da Câmara dos Deputados. Mais ouvimos deles, do que falamos, disse.

O representante da FUNASA, responsável pela saúde indígena, falou durante um longo tempo sobre a necessidade de primeiramente organizar a estrutura do órgão para, depois, implementar programas de atendimento à saúde indígena, treinar pessoal e et cétera e tal. Neguinho Truká, que acabou de sair da prisão acusado de liderar movimento contra a transposição do Rio São Francisco, abriu o verbo dizendo:

– Você falou uma hora e não disse nada! Vá fazer treinamento com astronauta! Nós não precisamos de treinamento da FUNASA, temos agentes indígenas de saúde. Nossos parentes estão morrendo de malária, de hepatite, de desnutrição e você vem falar de fortalecer a estrutura da FUNASA para, depois, treinar pessoal, para, depois, ver o que faz com a saúde dos índios? Nós não viemos aqui para brincar! Você acha que a vida dos índios pode esperar? Eu estou indignado! Eu não quero mais ouvir você!

A representante da AGU – Advocacia Geral da União – assumiu que quem deveria estar ali era seu chefe. Murchou e sentou.

Começou, ali no picadeiro do circo, a revelação de um quadro de horror entre os povos indígenas do Brasil e o descaso do governo para com eles. Denúncia de mortes entre os Xoclén de santa Catarina; de assassinatos entre os Guarani Nhandewa na fronteira com o Paraguai; de cinqüenta usinas de cana de açúcar cercando os Guarani Kaiowá do Mato Grosso do Sul; do incêndio das aldeias Guajajara de Araribóia e tiroteio de fuzil a mando do prefeito do município de Arame, no Maranhão; da fábrica de bebidas acabando com a Lagoa Encantada dos Tremembé de Almofala, no Ceará; de racismo em Santa Catarina, onde o governo declarou que no Estado não existe índio nem quilombola e; até uma comunidade virtual convocando a sociedade civil para acabar com os índios, no Maranhão.

Teve a promessa de que o presidente Lula receberia, no dia seguinte, uma delegação de quarenta lideranças indígenas para uma audiência em seu Palácio da Alvorada. Mas teve, também, uma Nota Final do V Acampamento Terra Livre denunciando ao mundo o crescimento acelerado de uma trama etnocida entre o Estado e os poderosos contra duzentas e quarenta nações autóctones, falantes de cento e oitenta idiomas e que detêm a sabedoria de como viver mais próximo da harmonia com o planeta.

Restou também um cartaz, manuscrito, colado na lona interna do circo, já vazio, dizendo:

Violência Contra os Povos Indígenas

2003 – 33 Assassinatos

2004 – 37 Assassinatos

2005 – 40 Assassinatos

2006 – 56 Assassinatos

2007 – 92 Assassinatos

Parcial 2008 – 13 Assassinatos (nos três primeiros meses do ano)

Brasília, Esplanada dos Ministérios, Acampamento Terra Livre 2008.

Anexo: Nota Final do Acampamento Terra Livre 2008

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ABRIL INDÍGENA 2008

Documento Final do V Acampamento Terra Livre

Nós, 800 lideranças representando os mais de 230 povos indígenas das distintas regiões do Brasil, nos reunimos em Brasília, de 15 a 17 de abril, por ocasião da mobilização indígena nacional, o Abril Indígena – Acampamento Terra Livre 2008, para analisar a situação dos nossos direitos, partilhar as nossas realidades, demandas e aspirações, bem como para unificar as nossas reivindicações e exigir, mais uma vez, do Poder Público a efetivação dos nossos direitos, justamente no vigésimo aniversário da Constituição Federal.

A nossa Carta Magna reconhece o caráter multiétnico e pluricultural do Estado brasileiro, portanto, o nosso direito ao tratamento diferenciado, na perspectiva da autonomia dos nossos povos.

Depois de analisarmos a situação dos nossos direitos e da política indigenísta nacional constatamos que continuamos a ser vítimas da discriminação, do preconceito e da intenção, explícita ou velada, de nos extinguir enquanto povos, com uma identidade diferenciada, fincada em espaços territoriais necessários para a nossa sobrevivência física e cultural, com organização social própria.

Contudo, fazemos parte do Estado Nacional, que depois da colonização européia se implantou sobre os territórios ocupados milenarmente por nossos povos e ancestrais.

O Estado brasileiro tem se mostrado incapaz de conviver e oferecer tratamento diferenciado aos nossos povos. O Governo tem feito esforços significativos, mas continua submetido à pressão de interesses econômicos e políticos que sempre mandaram neste país, criando situações que acarretam a grave crise no atendimento da saúde indígena e da violência contra os povos indígenas.

O Legislativo, dominado por esses setores, ao invés de regulamentar os nossos direitos, reconhecidos há 20 anos pela Constituição Federal, tem sido palco de intensa disputa com o propósito de restringir nossos direitos.

No Judiciário embora tenham sido registrados importantes decisões de mérito favoráveis aos nossos direitos, tais como a prioridade assegurada para apreciação dos processos de interesses indígenas, adotada pela primeira vez, em 2006, na gestão da Ministra Ellen Gracie, várias decisões liminares tem revelado compreensões limitadas sobre a aplicação das normas constitucionais, processuais e de proteção e promoção dos nossos direitos estabelecidos pela comunidade internacional, no âmbito da Organização das Nações Unidas.

Após vinte e cinco anos de tramitação reconhece-se o esforço do Ministro Eros Grau indicar para o julgamento definitivo o caso envolvendo a nulidade dos títulos imobiliários incidentes na terra tradicionalmente ocupada pelo povo Pataxó Hã-hã-hãe, no estado da Bahia. Esperamos que na gestão do futuro ministro Gilmar Mendes na presidência do Supremo atenções dessa natureza, que denotam sensibilidade para os direitos indígenas prossigam e sejam ampliadas para os demais órgãos do poder judiciário por intermédio do Conselho Nacional de Justiça.

Contudo, nos surpreende e deixa preocupados a recente decisão liminar do Supremo Tribunal Federal (STF) em medida cautelar requerida pelo estado de Roraima, de acordo com o voto do Ministro Carlos Ayres Brito, suspendendo atividade da administração pública federal destinada a garantir os direitos constitucionais dos povos Macuxi, Wapichana, Taurepang, Ingarikó e Patamona, na Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Esta decisão liminar do Supremo é inédita, por possibilitar que os invasores continuem usurpando o direito territorial dos povos indígenas, agindo com violência e com atos flagrantemente criminosos, que colocam em questão a convivência social, o Estado de Direito e a autoridade do Governo brasileiro.

Além destes casos e tantos outros que tramitam na justiça brasileira, destaca-se mais uma vez a necessidade do STF julgar o mandado de segurança contra a homologação da demarcação da Terra Indígena Ñanderu Marangatú, no estado do Mato Grosso do Sul, tradicionalmente ocupada pelo povo Kaiowá Guarani, cujo relator é o Ministro Cezar Peluso. Lembramos ainda da ação originária No. 442, da Terra Indígena Nonoai, no Rio Grande do Sul, que há 22 anos encontra-se para julgamento.

Diante deste quadro, os nossos povos mostram-se indignados e dispostos a lutarem, se necessário sacrificando a própria vida, para termos garantidos os nossos direitos. Dessa forma, exigimos do Governo brasileiro respostas urgentes e de relevante impacto, de caráter emergencial, mas sobretudo permanente e estruturante, às demandas apresentadas por nós nos últimos cinco anos e que pouco foram atendidas. Reafirmamos, porém, atenção especial às seguintes reivindicações e propostas.

1. Empenho na criação do Conselho Nacional de Política Indigenista (CNPI), envolvendo a sua base parlamentar na urgente tramitação e aprovação do Anteprojeto de Lei acordado entre o Governo e o movimento indígena no âmbito da Comissão Nacional de Política Indigenista.

2. Comprometimento na tramitação e aprovação do Estatuto dos Povos Indígenas, mantendo coerência com o acordado na Comissão Nacional de Política Indigenísta, no sentido de garantir a participação plena dos povos e organizações indígenas na discussão do mérito do Projeto correspondente, impedindo que temas contemplados no Substitutivo aos PLs 2057/91, 2160/91 e 2169/92 e seus apensos sejam tratados em leis específicas, como se pretende em relação ao Projeto de Lei nº 1.610, de 1996, cujo inteiro teor foi extraído do Capítulo sobre pesquisa e lavra de minérios em terras indígenas, já aprovado pelo Senado Federal e ora submetido à apreciação de uma Comissão Especial na Câmara dos Deputados.

3. Reformulação urgente da política de saúde voltada aos povos indígenas, garantindo o fim da dizimação em curso que vitima os povos indígenas no Mato Grosso do Sul e Vale do Javari, dentre tantos, aonde são registrados altos índices de doenças endêmicas e epidêmicas como a dengue, desnutrição, malária, tuberculose, hepatite, hanseníase e conseqüente alta mortalidade infantil. Este quadro, onde é clara a precariedade ou falta total de atendimento, tem provocado elevados índices de morte por desassistência.

A Funasa, órgão responsável pela saúde indígena, até hoje não tem se estruturado para oferecer um serviço à altura das nossas necessidades. São crônicos os problemas de demora na liberação de recursos e de medicamentos, de por si já escassos, a falta de profissionais, de infraestrutura e condições de trabalho nos pólos-base, postos de saúde e Casas do Índio, para as ações preventivas e curativas. A centralização retirou autonomia financeira e de gestão aos Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEI`s) e os índios são discriminados na rede do Sistema Único de Saúde (SUS). Este quadro tende a se agravar com a partidarização da saúde indígena, a terceirização e municipalização do atendimento e o desrespeito ao controle social exercido pelos Conselhos Distritais. Diante tudo isso reivindicamos: 1) a Revogação da Portaria 70, que institui a centralização da aquisição de insumos em Brasília e da Portaria 2656 que normatiza a municipalização da saúde indígena; 2) garantia da automomia política, administrativa e financeira dos DSEIS; 3) a permanência da saúde indígena no âmbito federal; 4) a criação de um fundo distrital; 5) reconhecimento e legalização das categorias de Agentes Indígenas de Saúde (AIS) e Agentes Indígenas de Saneamento (AISANS); 6) valorização dos pajés, parteiras e da medicina tradicional indígena; 7) humanização das Casas do Índio (CASAI`s); 8) aprimoramento do controle social através da formação e capacitação dos conselheiros indígenas; 8) garantia da referência e contra-referência na média e alta complexidade.

4. Demarcação e regularização de todas as terras indígenas, garantindo a sua devida desintrusão e proteção, para conter quaisquer tipos de invasões que ameaçam a integridade física e cultural dos nossos povos bem como a riqueza natural e da biodiversidade existente nos nossos territórios. Esses atos formais de reconhecimento dos nossos direitos territoriais devem ser necessariamente acompanhados de políticas de sustentabilidade dos nossos povos.

Destacamos as graves ameaças contidas no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), do governo federal, principalmente através de projetos de infraestrutura como usinas siderúrgicas, grandes empreendimentos industriais e comerciais e a Transposição das águas do Rio São Francisco que atinge cerca de 26 territórios indígenas da região nordeste, as Usinas do Rio Madeira, do Estreito e Belo Monte, na região norte, o Complexo Hidrelétrico do Rio Tibagi, que atinge várias terras indígenas no sul do país e as pequenas e grandes hidrelétricas nos Rios Juluena e Kuluene, no Mato Grosso, que afetarão mais de 20 comunidades indígenas.

Destacamos a urgente necessidade da garantia da integridade das terras Guarani, particularmente do Morro dos Cavalos, e dos povos Kaingang, Guarani, Xetá e Xocleng, também no sul do país.

Destacamos o impacto ambiental e social que a construção de usinas de álcool trarão para as comunidades indígenas no Pantanal, Mato Grosso do Sul.

Destacamos ainda a necessária e urgente conclusão da desintrusão da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, observando que não existe divisão entre as comunidades, tratando-se de uma falsidade fabricada principalmente por seis arrozeiros invasores, beneficiário de isenção tributária do Estado de Roraima até 2018, em detrimento dos direitos de 18.992 de cidadãos indígenas. É também urgente a desintrusão da Terra Indígena Maraiwatsedé, para o retorno do povo Xavante a seu território tradicional.

Ressaltamos que a demarcação e regularização das Terras Indígenas na faixa de fronteira em nada compromete a integridade e soberania do Brasil, pelo contrário é a extrema violência dos invasores que ameaça e compromete a segurança do país nessas regiões, como ficou demonstrado nas últimas semanas, na Terra Indígena Raposa Serra do Sol.

Constatada a morosidade do Estado no atendimento destas demandas, reafirmamos a nossa disposição de proceder a ocupar os nossos territórios.

5. Adoção de medidas urgentes para conter o processo de violência e criminalização a que estão sendo submetidos os nossos povos, organizações e lideranças, muitas das quais são presas de forma arbitrária ou assassinadas a mando de fazendeiros e outros invasores das terras indígenas, como acontece com freqüência na região Nordeste e no Mato Grosso do Sul. Só em 2007 foram assassinados 92 líderes indígenas. Destacamos a impunidade dos envolvidos nos assassinatos do líder Truká Adenilson e seu filho Jorge, em Pernambuco, do líder Ortiz Lopes Kaiowá Guarani e da rezadeira Xureté Kaiowá Guarani, e de lideranças nos Estados do Ceará e Maranhão, casos até hoje não esclarecidos. Repudiamos e exigimos o fim da violência policial, o confinamento e a criminalização do povo Cinta Larga. É preciso punir os responsáveis pelos crimes cometidos contra os povos indígenas.

6. Implementação de uma política de educação escolar indígena de qualidade, específica e diferenciada, que garanta condições para o ensino fundamental e médio completo nas nossas aldeias, e o acesso dos jovens indígenas ao ensino superior, considerando os nossos reais interesses e aspirações, em áreas como a saúde, direito e educação. Concretamente reivindicamos: 1) a criação de um Fórum Permanente de Educação Indígena; 2) a criação do Conselho de Educação Escolar Indígena; 3) a criação de uma secretaria específica de educação escolar indígena para tratar dos recursos destinados a educação escolar indígena; 4) formação de professores indígenas nas Universidades Federais e Estaduais; 5) apoio aos estudantes do ensino superior, através de bolsas de estudos, garantia de casas de estudantes indígenas, programa específicos e diferenciados, além do sistema de cotas; 6) que o MEC restabeleça convênios com as organizações indígenas e não governamentais, ouvidas previamente os povos e comunidades indígenas; 7) criação de um Subsistema de Educação Escolar Indígena; 8) realização da Conferência Nacional de Educação Escolar Indígena; 9) reconhecimento dos títulos de estudantes indígenas formados no exterior; 10) efetivação dos professore indígenas pelo Estado.

Conquistamos com muita luta nossos direitos na Constituição que agora completa 20 anos, mas o Estado brasileiro não está cumprindo com seu dever de torná-los realidade.

Contra as falsas acusações de que atrapalhamos o projeto econômico em curso, afirmamos claramente que nós, povos indígenas, com base em nossas próprias histórias, valores e culturas, temos muito a contribuir com o desenvolvimento sustentável do país, na perspectiva da construção de uma sociedade justa e de um Estado verdadeiramente pluriétnico e democrático no Brasil.

Brasília, 17 de abril de 2008.