OS YAWALAPITI
Cultura e sustentabilidade e resiliência pelo canto de uma mulher

No princípio as mulheres tocavam jacuí (flauta sagrada) e cantavam para toda a aldeia; aos homens, cabia ouví-las com reverência. Certo dia, os homens rebelaram-se, não queriam mais as mulheres no centro da aldeia, tomaram-lhes as flautas sagradas e criaram a Casa da Música, construída na uikúka (praça, centro). Desde então, as mulheres foram proibidas de tocar a jacuí ou mesmo entrar na Casa da Música, que se transformou em um ambiente restrito aos homens. A mulher que se atrevesse a tocar a flauta sagrada ou adentrar na Casa da Música, teria que ser possuída por todos os homens da aldeia, como punição e ensinamento. Mas se os homens as impediram de tocar, não puderam impedi-las de cantar, pois não havia como roubar-lhes a voz da garganta. Com o tempo, perceberam que era possível fazer música juntos e assim as mulheres cantam.

Esta história foi-me contada pelo putaki wikiti (dono da aldeia, chefe), Aritana, o líder dos Yawalapiti. Aritana, filho de Kenato, o legendário cacique tão citado pelos irmãos Villas-Boas em suas tentativas para criar o Parque Nacional do Xingu, é um líder, não apenas de seu povo, mas dos muitos povos que habitam aquele imenso território de 2 milhões e 600 mil hectares de diversidade biológica e cultural. No Parque vivem 4.000 índios de 14 diferentes etnias. Chamamo-los de índios, generalizando diferentes povos, pois quando os europeus aportaram por aqui, pensaram estar chegando nas Índias do Oriente. Eram muitos os povos que habitavam a terra que viria a ser chamada de Brasil; no Xingu: Kalapalo, Wauja, Meniako, Kuikuro, Kamaiurá…, várias etnias, troncos linguísticos, culturas. Para ser líder no meio de tanta diversidade é preciso compreender o outro, ser tolerante, aprender a ouvir, falar muitas línguas; o idioma Kamaiurá é do tronco tupi-guarani, Kuikuro (Karib), Yawalapiti (Arauak). Aritana é poliglota, fala oito idiomas e os exercita no conselho dos povos do alto Xingu.

Os Yawalapiti, desde tempos imemoriais, sempre habitaram a região e seu território fica entre os rios Tuatuari e Kuluene. O primeiro contato registrado entre eles e o homem branco, foi em 1887, com a expedição chefiada pelo alemão Karl von den Steinen sendo que seus líderes eram Mapukayaka e Moritona (ou Aritana), descendentes diretos do primeiro putaki wikiti, Tatiwãlu. Neste encontro, ficou registrada a extrema pobreza em que viviam; pobreza sob o olhar do europeu, pois todos eram fortes e saudáveis. Após este encontro, aí sim, a miséria se abateu sobre os descendentes de Tatiwãlu. Mas eles também são filhos de Mavutsinim, o criador de diversos povos do alto Xingu e que plantou os troncos do Kuarup fazendo gente renascer a cada ciclo de morte, brotando do tronco. Renascer a partir das dificuldades, até mesmo da morte, esse foi um dos sábios ensinamentos que o criador Mavutsinim deixou como herença. Ensinamento que de muito valeria quando a presença do homem branco se tornou mais frequente. Peste, vírus e bactérias tomaram conta do lugar e com eles, gripe, sarampo, diarréia… Boi, pasto, soja, muita carne criada e comida plantada e com elas, fome, sujeira, terra cercada… Pressão, assédio, sedução, ataques de todo tipo, desde os com armas letais até os com açúcar, bem doces e, com eles, mortes, cárie, desespero…

Em 1948, havia apenas 28 Yawalapiti. Alguns anos depois, nova epidemia de sarampo. Eram um povo em extinção. A solução encontrada pelos irmãos Villas-Boas e por Kenato, pai de Aritana, foi a de uni-los em uma única aldeia e realizar casamentos com outros povos do Xingu. Povos que antes brigavam entre si, agora se uniam para brotar de novo, como no Kuarup. Em 2002 já são 208 Yawalapiti, mas muito poucos, apenas cinco, dominam plenamente o idioma e as histórias de seu povo. Os povos do Xingu podem não conhecer as leis da física ocidental e o conceito da Resiliência, mas conhecem os ensinamentos Mavutsinim e a força do Kuarup. Mesmo quando submetidos à adversidade, obrigados a recolher-se, encolher-se, dobrar-se e recuar, mesmo assim, eles têm capacidade de recuperação e retornam à forma original, apesar de submetidos a todo tipo de deformações. São resilientes os Yawalapiti; são resilientes porque fazem o Kuarup.

E para ser resiliente no mundo de hoje e brotar do tronco do Kuarup, é preciso transitar entre mundos, dominar códigos, ter conhecimento. Só assim os Yawalapiti se sustentam. O grande desafio para que o povo Yawalapiti brote com força é recuperar a sua língua. Apesar de os casamentos inter-etnias terem sido fundamentais no renascimento da aldeia, a linha de transmissão de cultura foi quebrada. Junto a isto, a pressão do mundo exterior ao parque do Xingu, as tentações da televisão, do consumismo. Recentemente, até parte da aldeia pegou fogo, aquelas imensas naves xinguanas, catedrais em palha e madeira construídas em círculo, uma a uma, pegando fogo; e leva seis meses para reconstruir cada casa. Não tem sido fácil a vida dos Yawalapiti.

“Você sabe como era antes, quando você chegava numa aldeia. Todo mundo pintado, tudo muito bonito. Não era assim como hoje. Antigamente, de tardezinha, o centro da aldeia estava cheio de gente. Velhos, jovens, meninos, todos reunidos, conversando sobre o que tinha feito, o que ia fazer, contando alguma história, conversando sobre o dia…hoje não, só os velhos vão no centro. Parece que aquela alegria acabou” (Ichimã Kamayurá).

Mesmo o processo de educação indígena, tão fundamental para que transitem entre mundos, gera dúvidas.

“Estamos confusos. Eu mesmo fui contra a educação do branco. Eu não quero que nosso povo fique sem saber nada, mas não pode perder a cultura…” (Aritana Yawalapíti).

O professor indígena, por ser jovem, é visto com desconfiança pelos mais velhos e a própria relação política interna na aldeia vai sendo subvertida. Mas são fortes as raízes dos Yawalapiti; são fortes porque cada vez mais eles buscam conhecer suas histórias e conhecem suas histórias porque fazem o Kuarup. Por isso cantam; Awapá, nosso canto.

“…Então eu estive pensando muita coisa à noite, como é que se pode fazer isso agora. Porque só uma pessoa tem os cantos.. Só ele tem? E o resto? Não pode… Ele tem de passar isso já, para os mais jovens. Essa música da jacuí é mais e mais importante, a gente não pode perder isso. Meu pai tinha tanta música, já levou. Não passou para ninguém. Por que não passou para ninguém? Porque ninguém se interessou… É muito importante agora a gente gravar essa música, o rapaz novo aprender, não ficar só ouvindo esse tum tum [ele estava se referindo às batidas eletrônicas que já começam a ser escutadas no Parque Nacional do Xingu]. Pode ter tum tum, mas pouquinho. Isso que eu fiquei pensando à noite. Como é que se pode fazer tudo isso? (Aritana Yawalapíti)

São espertos os Yawalapiti. Entre eles há um que ganhou o apelido de McGuiver [o personagem de um seriado americano de televisão que construia engenhocas apenas com um grampo, cola, arame e fósforo], é o cientista da aldeia, opera aparelho de rádio, conserta o motor do carro, inventa coisas. A cultura também preserva nos inventos; e se recria. Assim eles se propuseram a formar um Ponto de Cultura.

Ponto de Cultura Yawalapiti

Os Pontos de Cultura fazem parte do Programa Nacional de Cultura, Educação e Cidadania – Cultura Viva, do Ministério da Cultura. O Programa teve início em 2004 e já são mais de 500 Pontos espalhados por todo o Brasil. O conceito é a interligação em rede, o trabalho compartilhado e o desenvolvimento de atividades culturais respeitando a autonomia e o protagonismo das comunidades. O Ponto é um articulador, um espaço de recepção e irradiação de cultura, liberando energias sociais como se estivesse fazendo uma massagem, um do-in, uma acupuntura social, pois um Ponto de Cultura não se cria, nem se inventa, se potencializa. A partir do que já existe, a cultura se recria, como no Kuarup.

O que o governo faz é disponibilizar um recurso em dinheiro (até R$ 185 mil para um período de 30 meses) que é gasto conforme a necessidade e plano de trabalho de cada proponente. Em um Ponto podem ser equipamentos; em outro, a prioridade vai para instalações físicas, ou então, como na maioria, realizando oficinas e atividades continuadas de registro, recuperação e invenção da cultura. O único ponto comum a todos é o estúdio multimídia [pequeno estúdio para gravação de áudio e vídeo e interligação por internet em banda larga] para que cada Ponto registre suas expressões e possa trocá-la com soberania e sem hierarquias.

Cada Ponto é um Ponto, cabendo todas as linguagens, representações e expressões: teatro popular, teatro experimental, circo; música popular, choro, samba, jongo, erudita, uma mistura de tudo isso, também com um pouco de jazz; dança, dança de rua, coco, afoxé; maracatu, boi, cinema, cinema de animação; contação de estórias, registro de memórias, rádio, cultura digital, hip hop, repente… Os Pontos estão espalhados por todos os estados mais o Distrito Federal e, preferencialmente, nas áreas de menor acesso aos bens organizados da cultura: favelas, pequenos municípios, periferia de grandes cidades, cortiços, quilombos, assentamentos rurais, sítios do patrimônio histórico, aldeias indígenas… Entre estes Pontos, o dos Yawalapiti, no alto do Xingu.

As atividades do Ponto de Cultura Yawalapiti, na terra indígena do Xingu, conforme proposta do IPEAX (Instituto de Pesquisa Etno Ambiental do Xingu), prevê uma escola de língua, publicação de cartilha, dicionário e gramática em Yawalapiti, registro das músicas tradicionais, de cenas indígenas, da moda xinguana e do grafismo corporal, artesanato, arquitetura tradicional e Yawalapiti na web. O IPEAX é presidido por Aritana e seu conselho diretor composto em sua maioria por índios do Xingu. Tem memória os índios do Brasil e eles sabem o que acontece quando transferem para outros o destino de seus povos. Mesmo que num primeiro momento o preenchimento de planilhas e documentações pareça difícil para um índio que mora no Xingu, melhor falarem por si mesmos, sem intermediação. Conquistam autonomia os Yawalapiti; conquistam autonomia porque fazem o Kuarup.

O trabalho começou antes mesmo que o convênio do Ponto de Cultura fosse assinado com o governo. Os Yawalapiti sabem que precisam de apoio externo, mas também sabem que, se quiserem desenvolver ações sustentáveis, é necessário contar primeiro com eles mesmos. Primeiro reconstruíram a Casa da Jacuí, a Casa da Música, também conhecida como Casa dos Homens, assim chamada desde quando os homens tiraram a flauta sagrada das mulheres. Com esta iniciativa, outros povos do Xingu também refazem a morada tradicional da jacuí bem no centro de suas aldeias circulares. No Kuarup de 2004 não eram apenas os velhos que cantavam o repertório da festa, o jovem Ianukulá surgia, como um resiliente que é, do tronco do Kuarup e encantou a todos com a música tradicional dos Yawalapiti. Mas o repertório dos Yawalapiti é grande e está se perdendo, e cantar uma música não depende apenas de decorar a letra, é preciso conhecer os contos, os ritos, emoções, tudo isto está contido numa língua. São poucos os que dominam plenamente o idioma Yawalapiti – a maioria dos moradores da aldeia até fala, mas misturado com idioma kuikuro, kamaiurá, que fazem parte de troncos linguísticos completamente diferentes –, por isso é importante aprimorar o uso da língua, do contrário a raiz fica fraca.

Foi no ano seguinte, 2005, já no processo de discussão do Ponto de Cultura, que Mavutsinim deixou mais um ensinamento para o mundo dos homens. Desde muito tempo, o centro da aldeia cabe aos homens, assim como o direito exclusivo de tocar a Jacuí. As mulheres só chegam mais próximo quando chamadas, pois todas conhecem o castigo a que estarão submetidas se infringirem as regras, e mesmo assim, apenas se aproximam do centro para seguir os homens na dança circular e cantam. Durante dez dias, uma equipe de gravação e pesquisa acompanhou o repertório de dança e música da aldeia. Foi um grande momento: jovens, adultos e crianças esforçavam-se para que sua língua fosse registrada plenamente. Mas, apesar do esforço, nem todos a dominavam.

De repente, para surpresa de todos, um canto sai de dentro de uma das casas; a menor de todas, a mais pobre e esquecida, a menos conservada. O canto saia pela única porta, vinha bem do fundo escuro da casa de palha. Ali morava uma velha, Wantsu, uma das cinco a ter o pleno domínio do idioma e, certamente, a mais velha Yawalapiti da aldeia. Para os mais jovens, algumas estrofes pareciam incompreensíveis. Era Yawalapiti clássico. Sim, clássico, porque clássico é tudo aquilo que é fiel à tradição e serve de modelo para o novo. Wantsu cantou músicas que nem os homens mais velhos se lembravam, tirou do fundo de sua alma, como que vindo do tempo em que as mulheres, além de cantar, tocavam a Jacuí. Como no Kuarup, os Yawalapiti revivem. E revivem pelo canto de uma mulher.

Célio Turino é historiador, secretário de Programas e Projetos Culturais do Ministério da Cultura e coordenador do Programa Cultura Viva. É autor do livro Na trilha de Macunaíma (Ed. SENAC, 2005).