Ao longo do processo histórico de formação do Brasil, nós índios fomos vestidos com todas as roupas da discriminação e desrespeito. Tentaram sufocar nossa cultura, mas, ela resistiu na copa das árvores da densa floresta de nossos corações. Tentaram tirar nossas terras, procuramos outras, pois em cada lugar onde montamos nossa oca, este lugar passa a nos pertencer e nós pertencemos a aquele lugar; porque cuidamos e somos cuidados. Tentaram nos fazer não índios, nos mascarando com sonhos sem alma, porém, a tradição dos sons da floresta, do canto dos pássaros, do murmúrio do rio, não se acaba tão fácil assim. Foram séculos de luta, séculos de dor, mas da mesma forma que esperamos a mandioca crescer, pra depois colhermos e saciarmos nossa avidez; esperamos o momento certo pra fazermos valer nossos direitos.Para lutarmos diante dos não índios pelo que sempre acreditamos, foi preciso nos valer de suas armas, nos vestimos de suas armaduras e seus pensamentos. Ingressamos na política, fizemos vereadores, prefeitos, deputados. Fizemos nossos direitos serem respeitados por lei. Passamos a ser olhados com mais respeito. Começamos um novo processo de construção histórica, ou melhor, passamos a reinventar nossa história e melhor a escrever nossa história. Não só com palavras feita de verbo e sintáxi, mas com as palavras do coração, feitas de verdade e tradição.

Escrever é mais uma ferramenta que detivemos dos não índios para contarmos o universo indígena, dizermos o quão rico é a galáxia de nossas tradições, podendo assim contribuir para transformação de uma sociedade contaminada pelas futilidades, uma sociedade que aos poucos esquece a beleza do outro ser humano, esquece de cuidar da mãe terra, de plantar flores de esperanças. Monteiro Lobato afirmava que um país se faz de homens e livros. Palavras que não deixaram e nem deixarão jamais de serem verdadeiras. A história da literatura brasileira é basicamente formada por um pensamento ocidental, com formas e conteúdos padronizados por uma sociedade acostumada a rotular. Sinto falta nesta literatura escrita por índios, de um eco, um eco singular. Tenho vontade de ler um livro escrito por indígenas e encontrar na forma de escrever algo peculiar. Da mesma forma que encontro quando leio Grande Sertões veredas do grandioso Guimarães Rosa, não! Não quero escutar o mesmo eco da literatura do referido escritor, quero escutar um eco diferente, que seja nosso, como nosso é o murmúrio dos rios, os sons da floresta e os grafismos que não estão somente em nossas corpos, mas em nossas almas. Não!Não me interpretem mal, caros parentes. Na verdade, quando me leio, não consigo ver em meus versos, uma identidade que seja representativa na forma de ser e falar de nossos povos. Percebo em minhas estrofes, o murmúrio, do poeta Élson Farias, de Aníbal Beça, Carlos Drummond de Andrade, Thiago de Mello; mas não me percebo, como não percebo uma linguagem que seja nata, que seja de meus livros. Sei que os artistas, os escritores e principalmente os poetas, nunca nascem prontos, são moldados pelas suas referências culturais e intelectuais. A linguagem de um escritor nunca nasce pronta, a forma de se expressar e como ele coloca as palavras para demonstrar sua literatura vão se moldando com o tempo, com suor e paciência. Lendo Daniel Munduruku percebo a beleza de seus livros, a naturalidade de suas histórias, suas frases bem trabalhadas. Esta mesma percepção tenho quando leio Yagrarê Yamâ, Graça Graúna e como não poderia deixar de ser Elyane Potyguara. Se eu lesse o livro de todos estes escritores sem identificação eu iria encontrar o mesmo escritor. Talvez seja por serem escritores indígenas!? Não! Acredito que não, pois esta mesma ressonância literária encontro em Eloísa Prieto. Custo afirmar, como também me custa acreditar, que nós indígenas, para sermos publicados e principalmente para sermos lidos; tivemos que nos vesti por um padrão literário já existente, moldado pelo academicismo e pelas editoras. É valido, claro que é valido, são caminhos que buscamos para fazer valer nossos sonhos e ideais. Mas agora, com vários escritores indígenas publicados, alguns premiados nacional e internacionalmente, é chegado o momento de criarmos uma forma de escrever que seja nossa; que não tenha de diferente apenas o exotismo de nossas tradições, de nossos grafismos e mitos, mas que tenha o eco de nossos antepassados, que tenha os contornos da fala de nossos Tuchawas, dos velhos que repassavam o saber da mãe terra em rodas de histórias, encanto de Kurumins e Kunhantans. Anseio por uma literatura indígena que permaneça, que sobreviva, não somente ao tempo, mas também as intempéries das mudanças literárias; para que assim os críticos literários possam afirmar palavras que sejam vestidas da mesma intenção das palavras de Carvalho (1940, p.45), ao afirmar sobre a literatura Chinesa. Em seu estudo escreveu, “A China, ainda se deleita com as lendas nas composições poéticas e narrativas de ficção; os elementos simbólicos e alegóricos de livros como o Lisão (de 300 a.c), poema elegíaco, ainda vivem, embora adornados de modernices, na alma do povo”. É disto que sinto falta é nisso que acredito; quero poder repassar aos leitores de meus livros esta essência, esta verdade. Espero um dia poder encontrar, não só em meus livros, mas nos livros de outros parentes.

Autor: Poeta indígena Sateré Mawé – Carlos Tiago- contato:ctpoeta@yahoo.com.br