A memória é uma excelente ferramenta, quando associada com a ação direta fica ainda melhor e é o que norteia as ações do MIR desde 2010, quando nascemos enquanto movimento de luta e oposição aos planos de governo que incidem indireta e diretamente na vida da população indígena. Passamos 9 meses acampados na Praça do Três Poderes, de frente a Câmara Federal, Ministério da Justiça e Casa Civil. Foram duros 9 meses de enfrentamento cotidiano para barrarmos o desmonte da FUNAI, que com todas as queixas que temos acumulados, ainda é um órgão que devemos defender, pois é o único deste Estado que, pouco e mal, ainda faz por nós e só não faz mais porque quem está nos poderes do Estado não o quer.

O estopim que originou o Acampamento Indígena Revolucionário foi a promulgação do Decreto Presidencial 7056/09, assinado na calada da noite e no último dia do ano de 2009, enquanto todos estavam já festejando a virada do ano, o então presidente ex-Lula da Silva golpeou os povos indígenas com o que veio a ser o maior desfalque na FUNAI, desde o regime ditatorial militar.

Neste ano, os povos indígenas de norte a sul e leste a oeste estavam em intensa luta de retomada, recuperando parcialmente seus territórios outrora invadidos por fazendeiros. Em contrapartida, os anos que antecederam 2009 foi de intensificação da produção do agronegócio e consequentemente a expansão da fronteira agrícola sobre as poucas áreas que ainda estavam em posse dos povos indígenas e ou já em estudos para a demarcação. Além de implementação de projetos desenvolvimentistas, ligados ao plano IIRSA, que inclusive devemos estudar mais a respeito, pois muitas surpresas ainda estão por vir e nada de bom aos povos indígenas.

A FUNAI é o órgão a quem os povos indígenas recorre para solucionar todos os seus problemas, é o Estado para nós indígena ou é assim que deveria ser. Toda política de assistência que precisamos é a FUNAI que procuramos, isso já não era tão fácil, pois os polos não estavam tão próximos dos povos, mas conseguíamos o acesso, mesmo com dificuldades.

Após o decreto do ex-Lula, os postos avançados foram fechados, obrigando muitos de nós a nos deslocarmos até Brasília para preitear algo junto a FUNAI, o que para muitos não é possível, pois com as dimensões dos estados, em alguns casos os custos de deslocamento é altíssimos e inviável para qualquer um de nós. Nem precisamos falar o que isso significa para a população que depende do órgão pra tudo.

O desmantelo da FUNAI era só a ponta o punhal. Pegos de surpresa, as lideranças de vários povos conseguiram se mobilizar rapidamente e no início de janeiro de 2010 já estávamos cerca de 200 lideranças na Esplanada. Primeiro tentamos audiência com o presidente da FUNAI, com a ministra da Casa Civil, com o presidente da República, com o Ministro da Justiça, nenhum nem outro nos atendeu. Foram 9 longos meses acampados ali na frente. Nove meses de calor, frio, chuva e gás de pimenta, bomba, tiro e tortura das polícias do DF. Prisões, apreensões, estresses, traumas e abortos. Nada disso comovia o governo, que mandava apenas Paulo Maudos ir falar conosco. Maudos, antes de assumir o cargo junto ao governo, se dizia nosso aliado, era da coordenação do CIMI e até hoje para nós não nos foi avisado do seu afastamento do órgão ligado a CNBB, daí a origem das indiferenças mútuas entre o MIR e o CIMI. Ele, Paulo Maudos, sempre fez uso de seu passado missionário para ludibriar algumas lideranças, que acabaram abandonando a luta no acampamento.

Paulo Maudos agiu como o melhor agente do governo. Outro não faria melhor. Os anos no CIMI fez dele a melhor tática do governo para impor suas pretensões aos povos indígenas, seja ganhando tempo com as falsas promessas seja impedindo diretamente a participação política dos povos indígenas nas decisões primordiais sobre a vida comum nas aldeias e as intervenções dos megaprojetos em terras indígenas.

O governo estava na mão o agente que precisava para amansar as guerreiras e guerreiros, Maudos e contava com o judiciário e legislativo para dar os golpes de caneta. Tudo o mais ficava por conta dos fazendeiros, construtoras e cia. O cenário da barbárie.

Pouco antes do sucateamento da FUNAI, já esperando por respostas do nosso segmento, a então ministra da Casa Civil, a atual presidente dilma, havia melhorado o documento norteador da ação das forças armadas e polícias dentro do território brasileiro, documento conhecido como GLO – Garantia da Lei e da Ordem, que nada mais é que a legitimação das práticas de torturas e assassinatos que vimos nos últimos anos, onde a polícia federal pode invadir aldeias do Povo Tupinambá a qualquer hora do dia e da noite, torturar, matar e prender arbitrariamente, o que ficou mais explícito foi a invasão do complexo de favelas do Alemão, no Rio de Janeiro. Documento este, que nem o tucano, FHC teve a pachorra de usar em seu governo. Uma herança dos militares.

Quando leis como essas, que reduz os direitos e ou o acesso a eles e leis que legitima a opressão estatal entram em vigor, já sabemos por acúmulo empírico o que vem em seguida.

Tudo devíamos prever com a decisão do STJ no caso da demarcação da TI Raposa Serra do Sol, mas a peneira conseguiu impedir que muitos de nós visse o que se passava do outro lado. Assim o governo veio com a portaria 303, que nada mais é que transpor para todas as terras, demarcadas e em processo demarcatório todas as condicionantes de Raposa Serra do Sol. Ou seja, limitar a vida da população indígena e condena-la à vegetar “eternamente em berços esplêndidos”. É isso, sem exageros.

Daí o turbilhão concomitante de projetos leis, mesas de negociações, promessas e mais promessas. E o que vemos de resultado disso tudo é a Constituição Federal e um tanto mais de leis sendo descumpridos pelo próprio governo que fez juras de cumprir e fazer cumprir toda a legislação.

Não podemos esquecer que a ação policial na manifestação de protesto dos povos indígenas na ocasião dos eventos em Porto Seguro – BA comemorativos dos 500 anos de invasão, que deixou todo nosso segmento revoltado com FHC, somado as inúmeras promessas de solubidade de nossos problemas relativo a demarcação de nossos território durante campanha eleitoral de ex-Lula, fez com que todo nosso segmento depositasse nas urnas o voto ao ex-operário eleito. Depois que conseguiu a cadeira principal do poder executivo, ex-Lula nada fez e nossa política pública mais marcante na era PT é a estatística dos assassinatos, que chegou a ter até 2012, 269% de aumento. Soma ainda ao legado Lula-lá a menor quantidade de terras demarcadas desde de 1988, o maior número de encarceramento de indígena desde 1985, o maior número de grilagem de terras, ocasionando o fenômeno conhecido como beliche fundiária desde 1985, o maior índice de suicídio de jovens indígenas e o maior genocídio e etnocídio após a nova república. Com deslocamento forçada da população juvenil para as zonas urbanas.

Perspectivas na luta

Hoje tive acesso ao texto do Cleber (leia aqui), do CIMI, pela primeira vez colocando o Paulo Maudos no seu devido lugar de vilão nessa história toda. Texto inclusive que podemos tirar conclusões norteadoras para o segmento social indígena. Nos revela que não há outro caminho, se não a radicalização das organizações e povos indígenas.

Quando digo radicalizar, também devo dizer em se preparar para isso. Precisamos construir espaços de formação de nossos militantes, devemos dar ferramentas de luta para nossxs guerreirxs. Devemos propiciar espaços de reflexão e síntese de nossa guerra contra o Estado e contra o Capital.

Paralelamente, devemos buscar o diálogo com os demais segmentos dos povos empobrecidos e para além disso, devemos estabelecer alianças políticas com estxs companheirxs de trincheira nesta guerra que há de findar com nossa força e união. E não devemos respeitar as fronteiras nem nos enfraquecermos pelas barreiras geográficas e linguística, devemos construir uma luta internacionalista, unindo forças com parentes e demais que vivem sobre o colonialismo do capital de todo o mundo.

Nota: onde consta “Maudos”, o correto é “Maldos”.