Conheci o site Índios Online pela primeira vez através de uma matéria da Folha de São
Paulo intitulada: “Índios na Rede”75, poucos dias após o seu lançamento em 19 de abril em 2004. A
simbólica data partiu da idéia dos membros da organização não governamental Thydewá
composta por índios e não índios, coordenada por Sebastián Gerlic, promotora da iniciativa.
Naquele momento eu já pensava no tema para uma pesquisa em nível de mestrado, já que
terminaria a graduação no 1º semestre daquele ano. Diante de vários sites apresentados na
reportagem, boa parte de OnGs e instituições governamentais, o projeto Índios Online se
destacava porque era uma iniciativa que envolvia os próprios índios em sua execução. Acessei o
site e a grande novidade encontrada foi a existência de um chat (bate-papo), o qual qualquer
pessoa, desde que se cadastrasse, poderia interagir com os índios das setes etnias participantes
do projeto: Kiriri, Tupinambá, Pataxó-Hãhãhãe e Tumbalalá (Bahia), Xucuru-Kariri e Kariri-Xocó
(Alagoas) e Pankararu (Pernambuco). Foi surpreendente notar a existência de etnias, que até
então, julgava-se “desaparecidas”, dentre eles, os Tupinambá (etnônimo cunhado a partir de textos
coloniais). Textos, fotos, cantos, lamentos, denúncias, histórias a um click.
Fiz uma pesquisa preliminar no site em dezembro de 2005 com objetivo de interagir e
sistematizar o conteúdo, levando em conta textos, imagens, e minhas rotas de navegação,
interessada em identificar os principais temas abordados e qual o significado para eles da Internet.
75 Folha de São Paulo. “Índios na rede”. São Paulo, 28 de abril de 2004.
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A idéia do site se desenvolveu depois da experiência da Thydêwá76 com a coleção de
livros “Índios na visão dos índios”, com textos, fotografias e desenhos feitos por índios das etnias
Kiriri, Tupinambá, Truká. A coleção chegou a oito livros publicados (entre 1997 e 2004)77 e,
segundo eles, “foi nascendo da experiência de fazer colaborativamente livros com as comunidades
indígenas”.
De 2001 a 2004 eles tiveram o patrocínio da cadeia de hipermercados e supermercados
Bompreço78. Em 2004, começou o projeto de conectar as aldeias, com o apoio do Governo do
Estado da Bahia. Foram comprados sete computadores com conexão via Star One e, com o
respectivo apoio da Unesco, fizeram contato com as aldeias, entre as quais foram eleitos dois
representantes para uma oficina de qualificação (orientação para o uso do computador). A 1ª
oficina aconteceu por uma semana, em horário integral, em Salvador, sede da Thydewá, e cada
etnia saiu com um computador para instalar na aldeia.
Figura 11 – Chat do Índios Online
Desde o início do Projeto Índios Online, houve no site o chat para facilitar a comunicação
entre as aldeias. Porém, em algumas aldeias ocorreram problemas técnicos como ausência de
conexão e até a infecção virtual por um vírus eletrônico. Entre os Kariri-Xocó na Bahia, o
computador “pegou” vírus, ocasionando, segundo Sebastián Gerlic, um furor na aldeia: “Os índios
ficaram com medo de pegar também o vírus do computador e se afastaram da máquina até vir um
técnico”79.
Em abril de 2006, o Ministério da Cultura iniciou o apoio ao projeto e anunciou a
instalação de pontos de Internet dentro do Programa Cultura Viva, os chamados Pontos de
76 Thydêwá: “esperança da terra” – palavra Pankararu.
77 Os quatro primeiros livros da coleção foram publicados pela organização “Águia Dourada” com a
participação de índios (Fulniô, Pankararú, Kariri-Xocó), e não índios (o publicitário argentino Sebastián
Gerlic) entre 1997 a 2001. Divisões internas levaram uma parte do grupo a fundar a Thydêwá em 2002 e esta
retomou a coleção publicando mais quatro livros entre 2002 e 2004.
78 O Bompreço atua nos nove estados do nordeste: Maranhão, Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba,
Pernambuco, Alagoas e Sergipe.
79 Entrevista presencial realizada com Sebastián Gerlic, coordenador da Thydêwá, no dia 14 de novembro de
2006, em Brasília.
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Cultura80, nos postos de saúde da Funasa nas aldeias. Foram criadas também as sub-parcerias
com o Ministério da Comunicação (responsável pela disponibilização das conexões), com o
GESAC (Governo Eletrônico – Serviço de Atendimento ao Cidadão) e com o Ministério do Trabalho
e Emprego (oferece bolsas de trabalho para os índios no ponto).
Em agosto de 2006, no Programa “Novos Brasis”, do Instituto Oi Futuro, a Thydêwá
abriu uma nova dimensão à rede: ser uma comunidade colaborativa de aprendizagem, lançada no
3º Encontro da Rede, com os participantes do Índios Online, em setembro do mesmo ano. A rede
passou, então, a enveredar por uma nova fase, em andamento, chamada de “Arco Digital” uma
postura, segundo Sebastián Gerlic, “da rede em querer se abrir”, e oferecer um curso de
aprendizagem colaborativo para qualquer índio brasileiro por meio da educação digital, educação a
distância com a ferramenta Moodle81.
A metáfora do Arco Digital, proposta por Nhenety Kariri-Xocó, está associada ao arco e
flecha, instrumento indígena tradicional de caça (sustento) e arma (para a defesa e para o ataque),
com isso, as novas tecnologias, materializam os mesmos significados da caça e da guerra no
contexto informacional da sociedade contemporânea. Dentro do projeto serão oferecidas oficinas
realizadas por facilitadores nas áreas da saúde indígena, jornalismo étnico, educação, cidadania e
direitos, economia solidária e agro-floresta, voltadas para qualquer indígena, sem nenhum custo, e
dentro do princípio colaborativo. Nas palavras dos organizadores o objetivo é:
Trocar idéias e refletir sobre o Desenvolvimento, a Cidadania e as
Tecnologias de Informação e Comunicação; bem como,
compartilhar experiências, práticas e saberes.
O Arco Digital parte das realidades indígenas com o diálogo como
forma de construir coletivamente o conhecimento e interagir para a
transformação, no qual os índios são protagonistas responsáveis
de escolher os rumos para suas comunidades.
(http://www.indiosonline.org.br, 15.02.2007)
Além do que, o objetivo “é que os arqueiros participantes possam melhorar refletir,
planejar, elaborar e executar suas próprias ações e seus próprios projetos.”
(http://www.indiosonline.org.br, 15.02.2007). Prevendo uma continuidade e auto-sustentabilidade
80 O Ponto de Cultura é a ação prioritária do Programa Cultura Viva e articula todas as suas demais ações. Ele
é a referência de uma rede horizontal de articulação, recepção e disseminação de iniciativas e vontades
criadoras. Como um mediador na relação entre Estado e sociedade, e dentro da rede, o Ponto de Cultura
agrega agentes culturais que articulam e impulsionam um conjunto de ações em suas comunidades. Foi
previsto até dezembro de 2006, 220 pontos, só que em novembro havia apenas 40 pontos instalados. Ver:
http://www.cultura.gov.br/programas_e_acoes/cultura_viva
81 A ferramenta Moodle corresponde a Modular Object Oriented Dynamic Learning Enviroment, é um
sistema de gerenciamento de aprendizagem (LMS – Learning Management System) ou ambiente virtual de
aprendizagem de código aberto, livre e gratuito. Os usuários podem baixá-lo, usá-lo, modificá-lo e distribuí-lo
seguindo apenas os termos estabelecidos pela licença GNU GPL. Ele pode ser executado em sistemas
operacionais Unix, Linux, Windows, Mac OS X, Netware e outros sistemas que suportem a linguagem PHP.
Ver: http://www.moodle.org .
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do Arco Digital, o projeto envolve a produção de um livro a partir das experiências do grupo e para
eles, com os seguintes intuitos:
1) Refletirmos juntos sobre a relação que nós queremos ter com a
TECNOLOGIA.
2) Utilizar o livro para que muitos índios possam refletir junto
conosco e também para que muitos não índios possam
compreender quem são os índios hoje e qual é a relação que os
índios querem ter com a tecnologia, lutando assim contra os
preconceitos.
3) Que o livro possa ser apresentado junto aos projetos que vocês
irão encaminhar para os financiadores e ou parceiros, dando
assim respaldo e credibilidade a vocês.
4) Que possamos vender alguns livros para termos recursos para
dar continuidade ao ARCO DIGITAL.
(http://www.indiosonline.org.br, 15.02.2007)
Isto é, para o grupo que trabalha no Índios Online e no projeto “Arco Digital” a tecnologia
é um importante objeto de reflexão associado à atualização da imagem dos índios perante a
sociedade em geral e, principalmente, em combate ao preconceito. O conhecimento, as ações de
formação educativa colaborativas e a visibilidade reivindicada pelos grupos que afirmam uma
identidade étnica indígena, revelam uma nova face desterritorializada dos processos
contemporâneos de etnogênese que incluem a comunicação digital como estratégia.
Por ser um portal, a arquitetura da informação é complexa, há várias páginas conectadas
relacionadas às etnias participantes. O site é dinâmico, tanto que qualquer um dos participantes do
projeto pode publicar e qualquer usuário pode fazer comentários (a estrutura é muito próxima ao
blog).
O projeto iniciou com sete etnias e hoje conta com a participação de mais três: os
Pataxós, os Tuxás, e os Trukás. A página principal do site é chamada de “OCA”, referência ao
nome dado em tupi-Guarani à moradia tradicional dos povos indígenas. Ao centro, fotos e textos
escritos que destacam os Pankararu: os jovens, a saúde, os novos talentos (uma foto de um jovem
tocando violão), e comentários sobre uma reunião com a Funai. As cores do site são sóbrias, um
tom pastel muito claro que destaca, em forma de bambu na horizontal, dois menus com os
caminhos (links) estruturados para a escolha do usuário. O primeiro, no alto do site, com os links:
“Oca” (homepage); “Nações”; “Atividades”; “Fórum” (que não funciona, só para membros); “Cursos”
(com o blog do Projeto Arco Digital); “Diários” e “Chat”.
Em “Nações” funciona um mapa interativo da região nordeste e cada localidade
correspondente às “nações” assim auto-definidas: “Kiriri”, “Tupinambá”, “Pataxó-Hãhãhãe” e
“Tumbalalá”, “Xucuru-Kariri” e “Kariri-Xocó” e “Pankararu”, as novas “nações” que fazem parte
recentemente do Índios Online ainda não estão presentes no mapa. Cada “nação” é um hiperlink
correspondente às matérias (assim dita por eles).
Em “Atividades” surge um calendário com as atividades a serem realizadas pelos
membros do Índios Online.
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Em “Cursos” se encontra o blog do Arco Digital onde na página principal se registra a
frase “O site é a nossa maloca”, ou seja, é o lugar do encontro, da vida pública da aprendizagem, o
espaço onde alguém se faz “nativo”. Há um menu com os nomes dos participantes e das oficinas,
tudo com muitas fotos em forma de links.
Dando continuidade a esta descrição, no meu último dia de pesquisa neste portal,
encontro no link “Diários” um poema de Alexandre Pankararu postado há poucos minutos sobre a
Internet:
Há muito tempo, índios e tecnologia não se conciliavam.
Era impossível, imaginar ver índios navegando na rede mundial.
Até porque, na visão dos não indígenas,
O índio Brasileiro, é incapaz de ter seus próprios ideais.
Mas entre índios e não índios, quem primeiro popularizou,
Um pais que depois de invadido, disseram que um outro povo colonizou.
Daí fica uma pergunta, como o povo indígena vivia antes do SPI?
Será que não se alimentava?
Será que não se organizava?
Ou então todas essas teorias criadas sobre os povos indígenas, são besteiras?
Ou nada disso seja verdade,
E sempre fomos independentes,
Pois caçávamos, pescávamos e nos organizávamos,
Então nós nos consideramos, seres inteligentes e pensantes.
E agora por que o espanto?
Índios buscando autonomia?
Buscando porque, se sempre tivemos,
Ou será que, vamos viver em um mundo dependente, que criaram pra nós.
Então umbora meu povos indígenas vamos acordar,
Se antes caçávamos com arco e flecha,
Hoje temos um arco digital,
Se antes tínhamos que andar léguas e léguas,
Para falar com outros parentes indígenas,
Hoje temos um Chat
Então só tenho, mas uma coisa a falar,
O projeto índios on-line, não é de se espantar,
E que o índio não deixa de ser índio,
Só porque se conectou, mas ao contrario,
Isso só nos ajudou, e nos levou a realidade mundial,
Por isso não acredito, que índio conectado é banal.
Então não me interessa, se é índio ou não índio,
Ou qualquer povo que seja,
Só sei que todos são iguais perante a Deus,
Todos seres, inteligentes e pensantes,
Só com culturas e costumes diferentes,
Por isso meus parentes, vamos realmente ser independente,
E deixarmos de se sentir carentes, e buscarmos nossos ideais.
Então vamos aproveitar nossa conexão e lutar,
Seja de norte a sul, leste ou oeste,
Vamos conversar, e idéias vamos trocar,
E um mundo melhor vamos buscar,
Isso só depende de nós, indígenas sim,
Incapazes nunca.
Alexandre Pankararu
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Mais uma vez, em palavras e na hipertextualidade do ciberespaço, a reflexão sobre a
Internet envolve a importância da comunicação, da conexão. Importância que não pára em si
mesma, mas modifica as relações dos índios consigo mesmos e das instituições oficiais que os
representam: o poder de comunicação da Internet potencializa a independência deles para buscar
ações a partir dos “seus próprios ideais”.
No site foram vinculados links do Gesac, do Instituto Telemar e do Programa Cultura
Viva. O site apresenta ainda algumas informações em francês, mas todos os textos estão em
português. Existem muitos textos, comentários de pessoas que conheceram o projeto, professores,
alunos pedindo dicas para uma pesquisa escolar sobre os “índios”. A comunicação é intensa,
indicada principalmente pelo número de comentários nos textos. Torna-se difícil e desnecessário
descrever todas as páginas existentes no site. Além de serem muitas, todas apresentam vários
comentários e são atualizadas várias vezes ao dia, já que o site registra aproximadamente 1.000
visitas diárias de usuários e internautas82.
Há muitas fotos de índios, jovens e velhos, usando o computador. Os temas “das
matérias” vão desde as críticas às instituições oficiais indigenistas aos relatos de instrumentos
utilizados pelos índios. Mas, principalmente, e ostensivamente, seja o cotidiano em cada aldeia
seja o que para eles significa ser índio, é retoricamente construído para reafirmar que eles ainda
possuem a tradição dos seus ancestrais. Uma diferença residual, “misturada” mas, prevalente na
auto-identificação indígena. O passado constantemente rememorado se torna presente do discurso
sobre si e sobre o grupo, como indicador de “indianidade”, mas eles combatem a imagem do
passado, o estigma (do “índio selvagem”) produzido pela sociedade nacional, conseqüentemente a
mesma imagem que não os reconhecem como índios (genérica e etnicamente) na atualidade.
Reconhecimento jurídico, já alcançado, e reconhecimento local, pelas comunidades próximas às
aldeias, conflito que aflora quando a reivindicação étnica passa a ser também por terras.
Na oportunidade de ter entrevistado uma parte do grupo, na entrevista e no encontro a
ser comentado no próximo capítulo, percebi o significado particular da Internet para estes índios do
nordeste: Tupinambá, Tumbalalá, pataxós, que passaram por um recente processo de
reelaboração étnica. Fazem parte dos “ressurgidos”, dos da “viagem da volta” (OLIVEIRA FILHO,
1999), dos “emergentes”, daqueles grupos que recentemente reivindicam uma identidade étnica
específica. Para o grupo, a auto-identificação étnica de uma modalidade específica (Tumbalalá,
Tupinambá etc) resulta numa identidade atribuída, apropriada, reafirmada e tangível na memória
histórica da colonização e do preconceito dos “civilizados”.