DONA MARIA: Para contar o sofrimento

DONA MARIA: Para contar o sofrimento que a gente já passou aqui, eu acho que um dia é pouco. A gente aqui já tem sofrido. Já tem sofrido e vem sofrendo ainda.

PAULO: Quando o SPI estava aqui, o que foi que eles fizeram com vocês?

DONA MARIA: Que fez foi começar matar a gente! Porque os fazendeiro queria tomar o lugar aqui da gente, aí porque a gente não queria entregar, chegaram e mataram Zé Martinho, mataram Manoel meu primo… aí quando os outros veio aqui, os outros indio, aí esparramou tudo. Sim, primeiro pegaram a turma de índio e levaram para a sede do Caramuru, que esse tempo lá era do Caramuru.

PAULO: Que hoje é Bahetá, não é?

DONA MARIA: É. Levaram esses indio, pisando nos calcanhar dos indio como nos animal. Aí chegou lá, aí Deus ajudou que soltaram. Já nós tava tudo dormindo já no mato, e os jagunço queriam matar, acabar com tudo. E a gente ia tudo dormir no mato, um dia ta chovendo, um dia ta fazendo sol… ai meu Deus do ceu. E cada mulher carregava os filhos para debaixo dos pé de pau, tudo para se esconder. Quando nascia o dia, as velha ia tudo em casa, para fazer uma farofa na carreira e voltar para dar aos filho no mato. E lutemos assim, lutemos, lutemos, lutemos… com pouco pegaram a matar os índio. Mataram o finado Zé Martinho, mataram o Manoel… e mataram mais. Aí o povo pegou correndo tudo. Caiu tudo fora, e foi tudo para as fazenda. Nós mesmo foi para Fazenda Santa Maria, e os outros se esparramou tudo, uns para Mato Grosso, outras para o Xumbu…

Meu irmão morreu lá no Xumbu. Esparramou assim, uns para um canto, outros para outro, e de uns tempo para cá foi que a gente ta se juntando aqui de novo.

Minha gente, vou dizer, a gente aqui já sofreu.
Quando a gente ainda tava sossegada, ia no mato matar uma caça, comia, ia no rio pegava um peixe, comia… depois que pegou esse desespero, quem pode mais caçar nem pescar? E vinha tudo descarregado. Eu tinha dois meninos pequenos, era dois… era um, o outro já tinha morrido.

Larguemos tudo que tínhamos para ir.
Aí chegava gente lá, Maria, tu vai embora para tua terra, que tua terra não é aqui. Digo eu: Quem que vai lá, eu? E eu não queria voltar mesmo não, menino! Mas chegava homen, dava conselho, chegava outro, chegava outro, então fomos eu e Juarez, que é esse menino que morreu aqui, é o pai de Tonho. Ele disse, mãe, vamos embora para lá, dizem que a terra lá é uma terra boa, e tudo que se planta se vê mesmo, mas eu não estou esquecida do que eu sofri lá não. Lá não, vamos embora, eles estão dizendo que lá não tem mais nada, lá com a gente. Embora para lá! Aí eu vim aqui passear com o Tonho aí no Caramuru. Chegou aí o povo, deu conselho compadre Lourenço, foi tudo os índio daí. Foi seu Leonço, disse vai embora para sua terra, melhor de que você ficar no alheio. Vocês com suas terra aqui só fica sofrendo nas fazenda dos outros.

PAULO: Que era os estado, não é, Dona Maria?

DONA MARIA: É. Aí nós resolvemos a ir, e aí viemos para aqui. Mas eu sempre fui com uma orelha na frente, outra para trás.

PAULO: Você tem lembrança assim do Titiá, Õhak, Natiko, Nokai?

DONA MARIA: Ôxente, esses aí eu conheci tudo.

PAULO: Que foram pego no mato pelo SPI?

DONA MARIA: Natiko foi pegado no mato, Titiá foi pegado no mato, Rosalina foi pegado no mato, Õhak foi pegado no mato, Bahetá foi pegado no mato, esses menino foram tudo pegado no mato. Tamany foi pegado no mato, que veio do mato dos Kiriri.

PAULO: Zé Butx…

DONA MARIA: Zé Butx também, vieram tudo do mato. Quando pegaram as índias mães deles, eles era tudo pequeninho. Criaram na sede. Conheci tudo… Natiko morreu de varíola.

PAULO: O que há de problema mais grave aqui na área, na opinião da senhora?

DONA MARIA: Meu filho, eu acho que é a desunião que o povo não tem aqui, é isto. O povo não tem união. Se fosse os índio todos unidos, para dizer assim que é tudo unido…

PAULO: E vem a desunião dos indio, que são três caciques na aldeia…

DONA MARIA: É.

PAULO: Que antigamente era só um só.

DONA MARIA: Pois é, é isso que estou falando. É a desunião. Três cacique! Quem já viu três cacique num posto? Num posto só precisa de um cacique só para resolver tudo. Três cacique num posto! E como de primeiro não tinha cacique, não tinha liderança, não tinha nada, e todo mundo vivia. Assim não presta, assim não vai para canto nenhum! O povo de primeiro era mais unido de que hoje. Que de primeiro não tinha cacique, não tinha liderança, não tinha nada. E hoje é três cacique, e nenhum não resolve nada. O Gerson nem aqui vem, a Ci nem aqui vem, ninguém nem vê a cara de Nailton. Ninguém vê esses cacique. Qual é a união que está aqui? União cá é a nossa mesmo.

PAULO: É da família, né?

DONA MARIA: É.E nem lugar de botar roça aqui tem. Manga assim… meu marido, um velho desses vai arrancar capim para colocar roça? Eu mais ele já fizemos muita roça, sozinhos. Em Coroa Vermelha ele cabrucou oito tarefa de mata. Cabrucou, derrubou, e nós encheu de canto em canto de maniba, de andu, de tudo que foi trem. Tivemos lá em baixo em, em…. nós deixamos uma roçona de mandioca., porque ele adoeceu. Eu vi que ele ia morrer, e vou ficar aqui mais com esse velho, esse velho morre aí de repente, carro não ia lá, nada ia, eu disse, quem é que vai tirar esse velho daqui? Aí nós larguemos a roça tudo lá e saímos. Aí nós pegamos o carro, viajemos, viajemos, até que chegamos em Eunápolis, internou ele logo. E assim nós lutando, lutando, perdendo.

PAULO: E a senhora sabe assim como é que é a questão da FUNAI? Está dando assistência à senhora? A FUNASA?

DONA MARIA: A FUNAI ta dando nada a ninguém! Qual é a despesa que a FUNAI ta dando para quem? Ninguém não abre o olho para passar vida de cachorro não! A gente não passa bem mal porque cria galinha no terreiro. Quando se vê apertar, nós mata um pinto e come. Mas de FUNAI? O que é que a gente vem pegando aqui?

PAULO: E como é que é a questão… será que essa terra que nós conseguimos é pequena? E as outras terras estão na mão dos fazendeiro. Que nós somos dono de 54 mil hectares de terra, e nós só conseguimos de 11 a 14 mil hectares de terra.

DONA MARIA: Olha, mas essa terra daqui do posto todo são 54 mil hectares, olha que vai lá no Rio Pardo, e do Rio Pardo vai lá no Itaju, Jacaricy e passa para o Rio Pardo de novo. Assunto que ela não é pequena não. Ela é grande. Agora tomaram um bocado de nós.

PAULO: A senhora tem assim a idéia quantos indios já morreram assim matado pelo fazendeiro?

DONA MARIA: Morreram muitos. Olha, ao Martinho foi fazendeiro que matou, ao finado Manoel, foi fazendeiro que matou. Tinha muitos. Tinha muitos que fazendeiro matou.

PAULO: Expulsavam da terra, matavam…

DONA MARIA: E corriam para não morrer. E morreu foi muitos. Não foi pouco não. Foi duzénas.

PAULO: O que é que a senhora queria de bom para esses netos da senhora, sobre a paz? O que é que a senhora deixava escrito assim? Para os seus netos acompanhar. Um conselho da senhora.

DONA MARIA: O que eu quero é que não enrole com maconheiros, sem ter desaforo, sem ter briga só. É isso que eu quero. Deus dê a paz a eles e todos.

PAULO: A senhora conheceu tudo aqui quando era mata, muita caça, muitos rios e peixes, não é?

DONA MARIA: É, ali, no Caramuru ou Toicim, você conhece o Toicim?

PAULO: Conheço.

DONA MARIA: Pois é, ali era tudo mata. Tinha uma aberta ali, outra acolá, em cada aberta tinha umas casa, e agora ta tudo aberto, tem muito capim, e nòs não temos gado para comer esse capim.

PAULO: E quem foi que deu essa ordem aos fazendeiro tomar conta dessas terra, desmatar a floresta?

DONA MARIA: Quem deu essa ordem foi doutor Santana e Zé Brasileiro, o Silva. Foi esses quem deu a ordem.

PAULO: Que eles eram funcionários do SPI.

DONA MARIA: É.

PAULO: Isso foi em que ano que eles deu essa ordem?

DONA MARIA: Menino, não sei.

PAULO: A senhora tinha que idade, mais ou menos?

DONA MARIA: Podia ter tido 14 anos….

PAULO: Isso foi nos anos 40, por aí, né? Arrendaram todas as terra.

DONA MARIA: Quando você sabia, tinha arrendado já a terra da gente. Quando os homens chegavam, botavam a gente para correr. Tudo que nem nós saímos, eu e minha mãe, a gente deixamos um pedaço de feijão maduro, aborbora, maxixe, de tudo, melancia, que a gente tinha plantado, tudo já maduro, pronto de arrancar. Daí a gente largou tudo lá, saímos correndo.

PAULO: Que é o nome da senhora?

DONA MARIA: Meu nome é Maria de Jesus do Rosário. Foi o padre quem me deu.

Dona Maria de Jesus do Rosário

Paulo Titiá