Francisca Novatino P. de Ângelo

O tratamento do tema da educação escolar indígena e a diversidade cultural exige que voltemos no tempo, para percebermos as mudanças ocorridas com a instituição escolar entre os povos indígenas: da escola catequizadora e civílizatória aos direitos garantidos na atual Constituição, muitos foram os avanços conquistados na atualidade.
Ao voltarmos no tempo, encontramos um Estado “brasileiro-europeu” que pensava numa escola, com a finalidade de “civilizar” os índios, por meio da transmissão de
conhecimentos e valores da sociedade ocidental. Nesse contexto, as línguas indígenas
foram consideradas importantes pelos colonizadores para a condução desse processo de
submissão, seja para a tradução das determinações e dos desejos do colonizador, seja como meio de facilitar a catequização dos povos. O pensamento de acreditar que os povos indígenas constituíam sociedades sem escrita, atrasadas e primitivas, que poderiam evoluir
até a civilização, atravessou séculos e trouxe grandes consequências e perdas irreparáveis para os ameríndios. Essa teoria dava suporte para a política de colonização da época, seja para levar a dita “civilização” para eles, seja para

A EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA E A DIVERSIDADE CULTURAL NO BRASIL

levá-los, pela catequizaçao, aos “reino dos céus”. Quantos povos desapareceram baseados nesse entendimento eurocêntrico? Fomos julgados, ao longo da história, como selvagens e primitivos, tratados a ferro e a fogo. Acostumaram-se a nos tratar como se fôssemos todos iguais, como se não existisse a diferença entre os diversos povos. Diante disso, surgiram variados tipos de preconceito, que justificaram o tratamento violento sofrido nesses
séculos.
Daí surgiu o processo de escolarização, dentro de uma política indigenista integracionista, que estabeleceu, com os povos indígenas, relações com o Estado lusitano, numa prática de controle político e civilizatório, aliado ao proselitismo religioso dos
missionários jesuítas.
A educação escolar foi utilizada como uma ferramenta de catequizaçao, como aliada
na discriminação e na visão ideológica do “índio”, que influenciou a formação do povo
brasileiro. São construções ideológicas de desvalorização da imagem do outro, feitas pelo
“branco europeu”, que foram inseridas nos currículos escolares, e se perpetuaram por
muitos séculos, contribuindo para o massacre cultural dos povos indígenas.
Outra ideia era acreditar que o “índio” não tinha passado histórico, conhecimento e
até alma. Eram desconsideradas as narrativas históricas dos povos indígenas, relacionandoos
a um tempo primitivo. A imposição do processo escolar entre os povos indígenas destruiu conhecimentos milenares, guardados na memória coletiva de cada povo e importantes para a humanidade. Por isso, muitos povos indígenas foram extintos e outros sobreviveram, mas perderam parte de elementos culturais como a língua e o território, porque foram obrigados a negar sua identidade para serem tratados como brasileiros.
Desde esse tempo, fomos negados também na construção da história deste país, tratados como gente de acordo com a conveniência dos europeus. Quando havia resistência
por parte dos povos indígenas, a declaração de guerra justa contra estes era inevitável, tornando-se uma luta desigual. A educação escolar e o manual didático reforçou e difundiu essa tese no ensino público. Por muito tempo a educação escolar indígena permaneceu na responsabilidade de missionários de diversas ordens, apoiados pelo Estado brasileiro.
No século passado, o Summer Institut of Linguistic (SIL), instituição religiosa que
tinha a missão de educar os índios e salvar as suas almas, se utilizou das línguas indígenas
para o convertimento religioso e civilizatório, através da imposição de adotar normas
gramaticais e sistemas de tradução das histórias bíblicas, mas partindo dos valores, princípios e conceitos da sociedade ocidental. Muitos povos tiveram sua língua escrita, mas o preço pago por isso foi a conversão religiosa, descaracterizando a sua cultura. Dessa forma, surge o monitor bilíngue, um professor indígena, domesticado e submisso, criado
para servir aos interesses da missão religiosa e na alfabetização da língua indígena, que somente serviria para a leitura da bíblia. Todo esse pensamento de “civilizar”, “integrar” os povos à sociedade nacional, herança deixada pelos colonizadores, influenciou a visão do Estado, através da legislação e da política indigenista, criando uma tutela assistencialista de
caráter dependente.
A partir da década de setenta, houve mudanças, nesse contexto, em nível internacional e nacional, com a mobilização e reorganização dos povos indígenas, apoiados
por entidades e em colaboração com os demais segmentos da sociedade nacional. As relações dos povos indígenas, com a sociedade civil, foram estabelecidas através da
articulação entre as organizações não-governamentais, conquistando espaços sociais e políticos, contrariando as ações integracionístas do Estado brasileiro.
A escola passou a ser pensada dentro dos direitos humanos e sociais, foi reconhecida a diversidade cultural e as experiências sócio-políticas, linguísticas e pedagógicas na
valorização do saber tradicional dos povos indígenas. Reconhecendo a educação comunitária dos conhecimentos construídos, ao longo destes séculos, dos processos próprios de aprendizagem e a visão de mundo de cada povo. Alguns órgãos do Estado apoiaram e passaram a discutir a educação escolar, dentro de uma nova visão de respeito à educação intercultural e de afirmação étnica. Os índios, numa necessidade de se apropriar
dos conhecimentos da sociedade nacional e para fazer valer esses direitos, se organizaram na busca da sua autodeterminação.
Na minha experiência como militante do movimento indígena, participar desse momento histórico de reconhecimento da valorização da cultura indígena na Constituição
brasileira foi valioso para a afirmação da identidade negada aos nossos antepassados. São
conquistas que mostraram a nossa resistência a séculos de opressão, garantindo para as novas gerações um futuro promissor de liberdade. A partir daí, muitos povos surgiram do silêncio secular imposto. Sabemos que a luta continua num novo contexto, a educação será um campo de novas conquistas, em busca da realização do projeto coletivo de cada povo.
Neste cenário nacional de mudanças de paradigma sobre a educação escolar, os povos indígenas aprenderam a se organizar e a reivindicar seus direitos de cidadania, reconhecendo que, mesmo sendo originários e nativos desta terra, na prática, a cidadania
não existia. Os movimentos sociais foram importantes na contribuição para a mobilização indígena e a sensibilização da consciência de setores da sociedade brasileira. Surgiram várias entidades que apoiaram e colaboraram com os povos indígenas nesse momento de
organização e articulação dos espaços sociais e políticos com a sociedade civil.
No entanto, a experiência dessa história contribuiu imensamente na luta pelos nossos objetivos, a escola é nosso verdadeiro instrumento de consolidação dos direitos conquistados. Não basta apenas adquirir os conhecimentos, é necessário que seja garantida
também a realização do projeto social para construirmos a escola indígena cidadã. Um espaço importante para novas gerações com espírito crítico e participativo, que contemple a valorização da cultura indígena.
Esse é nosso grande desafio, diante das exigências da sociedade ocidental, sendo também desafio da escola pública dos não-indígenas para garantir um ensino de qualidade para todos e, ao mesmo tempo, respeitar a diversidade regional, social e cultural. Trata-se de construir uma nova escola pública com a participação de seus beneficiários, com novas
posturas na política educacional. Sabemos que a história dos nossos antepassados, guardados na memória coletiva de cada povo, será o alerta da experiência vívida pelo
contato. Cada. povo construirá sua própria escola indígena, baseada nessas experiências.
Considerando as práticas pedagógicas e os conhecimentos adquiridos ao longo desse
processo, estarão construindo a vida comunitária, em que a educação escolar se insere
juntamente com a educação indígena, atendendo às necessidades de cada povo. Os sistemas educativos indígenas são processos tradicionais de transmissão e aprendizagem de
conhecimentos, nos quais os mestres são a família e o contexto sociocuítural da comunidade. A participação da comunidade na elaboração do planejamento curricular e polítíco-pedagógico requer a presença da escola nesse processo, para congregar os projetos societários, pois se trata de valorização da cultura, fortalecimento da identidade e
desenvolvimento socioeconômico. Portanto, a verdadeira escola indígena será aquela pensada, elaborada e gerenciada pelo povo indígena, de acordo com seus anseios, expectativas e modos de organização política e social, voltada para seu futuro. Sendo um
projeto coletivo, essa escola indígena específica e diferenciada será construída para efetivo
exercício da cidadania e da autonomia. Para isso, as instituições públicas responsáveis
devem centrar esforços para providenciar estratégias de participação, sob pena de cometer a negação dos direitos constitucionais.

POLÍTICAS EDUCACIONAIS COM OS POVOS INDÍGENAS

Com a inserção das escolas indígenas no sistema de ensino do país, como modalidade de ensino e a criação da categoria escola indígena, difere a escola indígena de outras escolas existentes no sistema, e obriga as instituições mantenedoras a se organizarem, a
aprender a lidar com o novo contexto social da diversidade cultural, a prover novos
instrumentos democráticos que garantam o atendimento dos direitos de cidadania.
Reconheceu-se que, mesmo sendo originário e nativo desta terra, na prática, a cidadania não está consolidada, será preciso nova mobilização, sensibilizando e cobrando destes setores institucionais o cumprimento constitucional.
Estamos em uma nova era, considerando o contexto mundial da perversidade da globalização, da concentração de renda, a desigualdade e injustiça social, que são o pano de fundo da sociedade ocidental, necessitamos de oportunidades para mostrarmos a nossa capacidade e responsabilidade de podermos traçar os nossos destinos.
O surgimento de novas organizações indígenas e de povos que foram obrigados a se silenciarem para não desaparecerem, e hoje emergem com toda a riqueza cultural, ainda
preservada em seus saberes e conhecimentos, nos possibilita buscar novas estratégias de
desenvolvimento sem perdermos a identidade como povo.
A Constituição Federal de 1998 destinou um capítulo específico à população indígena, reconhecendo o direito à diferença. Seu artigo 231 começa assim:”‘São
reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições e
os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União
demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens’.
A implementação de políticas e projetos de melhoria na educação escolar indígena significa, também, a capacidade de gerar e lidar com novos conhecimentos e códigos diferenciados, construindo e elaborando os saberes da tecnologia da sociedade envolvente
para fortalecer os nossos.
A aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), em 1996, assegurando os direitos de uma educação específica e diferenciada para as escolas (artigos 78 e 79), contemplou a educação escolar num novo processo de políticas públicas.
O Plano Nacional de Educação assegurou reivindicações importantes para a educação
escolar: trata-se da formação do professor indígena não apenas em nível de Ensino Médio
— Magistério, mas sua formação em nível superior e estabeleceu que cada Estado brasileiro deverá criar programas especiais para esse atendimento.
Nesse entendimento, ressalto que a consolidação da legislação só será possível se houver uma integração de políticas que contemple os anseios e expectativas dos povos
indígenas expressados nos projetos societários, atrelados também ao projeto políticopedagógíco
de suas escolas. O investimento na formação profissional dos professores indígenas em nível de magistério e de ensino superior renetirá nas mudanças de posturas
nas políticas e práticas institucionais de atendimento das escolas indígenas.
Para isso, será necessário que as instâncias de poder possam criar fóruns, garantindo a participação dos povos. Será uma forma organizada de compor representantes indígenas
nas instituições públicas, nas decisões políticas, pedagógicas e de gestão escolar, discutidas
e deliberadas como açoes para o atendimento na educação escolar, possibilitando a compreensão do processo de construção institucional e societária, no cumprimento dos seus papéis, estabelecendo competêndas e responsabilidades num sistema democrático.
Um instrumento importante será os programas de formação e capacitação dos técnicos governamentais e dos professores indígenas para a gestão escolar. Os professores também serão gestores de suas escolas e avaliados pela comunidade, o que fortalecerá o controle social.
Nesse sentido, o projeto da escola indígena será o verdadeiro instrumento de consolidação dos direitos, numa dinâmica de transformação, valorizando a tradição, os costumes e o conhecimento indígena. Não basta apenas adquirir os conhecimentos, é necessário revertê-lo para o projeto social, construído coletivamente. A escola como espaço importante para a continuidade de novas gerações refletirem com espírito crítico e
participativo o que temos como herança do contato e o tido como “moderno da sociedade nacional”. A responsabilidade de promoção da interculturalidade é um compromisso coletivo e está nas mãos dos povos indígenas.
Portanto, as políticas educacionais só terão resultados se os povos indígenas
participarem efetivamente na sua elaboração, expressando suas experiências no processo
construtivo do pedagógico, cultural, político e do institucional. E um processo em curso, no qual tanto os povos, quanto à esfera pública terão a oportunidade de se conhecerem e
estabelecerem novos encaminhamentos para a melhoria da qualidade de ensino nas terras
indígenas.

PROMOÇÃO DA DIVERSIDADE CULTURAL

No contexto atual, a sociedade nacional também tem o desafio de redefinir suas posturas, seus conceitos políticos e sociais, para garantir às minorias o direito à igualdade e
à diferença.
Num país como o Brasil, pluricultural e multiétnico, mas marcado pela desigualdade
social, corrigir os erros do passado requer uma tomada de decisões e mudanças nas ações
governamentais e uma reflexão profunda na história brasileira. A educação pode ser um dos instrumentos pedagógicos sociais para construir as relações interculturais, baseadas no
diálogo entre as culturas.
Os povos indígenas têm muito a contribuir na busca de um mundo melhor para a humanidade. E partindo da igualdade, da diferença e da parceria que podemos criar o novo.
Esse novo só poderá ser criado se a sociedade nacional oferecer a oportunidade aos povos de mostrarem a sua capacidade e competência de gerenciar seu próprio destino. Enfim,
trata-se de construir também novas concepções de entender o outro dentro da sua potencialidade individual e coletiva.
Concluo que as relações positivas entre educação e diversidade cultural são fundamentais para as mudanças de políticas, de ações, de posturas e de ideias equivocadas que degeneram as sociedades. A educação tem o dever de educar e reeducar a sociedade
para o convívio com a diferença entre as sociedades indígenas e a sociedade ocidental,mostrando as diferenças existentes entre as sociedades indígenas e também na própria sociedade ocidental. São considerações importantes que queremos como povos, culturalmente diferenciados, para o convívio com diálogo e com respeito mútuo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANGELO, Francisca Novantino P. de. “A educação e a diversidade cultural”. In: Cadernos de Educação Escolar Indígena — 3o. Grau Indígena. N. 01, Vol.01. Barra do Bugres:
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RAMOS, Marise Nogueira et alli (orgs.). Diversidade na educação: reflexões e experiências. Brasília: MEC, págs. 105-109, 2003.
GRUPIONI, Luís Donisete Benzi. “Educação em contexto de diversidade étnica: os povos
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GRUPIONI, Luís Donisete Benzi. “Um território ainda a conquistar”. In: Educação escolar indígena em Terra Brasilis, tempo de novo descobrimento. Rio de Janeiro:
IBASE, págs. 33-55, 2004.

* Esse artigo é uma versão condensada de outros dois textos publicados anteriormente (ver
Angelo, 2002 e 2003).